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Território e os Trabalhadores do Turismo: breves considerações sobre Arraial do Cabo (RJ)

Atualizado: 15 de out. de 2020

Juliana Carneiro | Mestre em Turismo/UFF



Fotografia tirada do Pontal do Atalaia. A foto dá destaque ao espaço urbano do distrito-sede do município, onde a Praia dos Anjos se encontra mais próxima, e ao fundo a Praia Grande. Crédito: Juliana Carneiro



O espaço representado se torna território, pois alguém se apropriou dele e, assim, são reveladas relações marcadas pelo poder (Raffestin, 1993). Portanto, o território deve ser observado na multiplicidade de suas manifestações e na multiplicidade de poderes através dos múltiplos sujeitos envolvidos (Haesbaert, 2007).


Os processos de territorialização carregaram consigo as dimensões funcionais e simbólicas: o território é funcional pelo seu papel como recurso natural e substrato material; já pela ótica simbólica ele está relacionado com a identidade, a partir do espaço vivido. Tais dimensões nunca se manifestam em estado puro, uma vez que todo território funcional tem sempre alguma carga simbólica, e todo território simbólico tem sempre algum caráter funcional (Haesbaert, 2004).


O espaço geográfico é formado por um conjunto indissociável, solidário e contraditório de sistemas de objetos e de ações que não devem ser considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá (Santos, 2008). Por isso, ao entender que o turismo é uma das variáveis que compõe a configuração territorial, a partir de seu uso, Telles e Valduga (2015, p. 8) propõem entender o fenômeno “não somente como uma camada técnica sobreposta ao espaço, mas como abertura interpretativa de uma realidade”.


Sobre um mesmo trecho de espaço ocorrem diversos processos de territorialização que se superpõem formando o território do turismo, composto pelos territórios produzidos por cada um dos agentes sociais responsáveis pelo acontecer do fenômeno turístico, a saber, territórios dos turistas, dos agentes do mercado, do poder público, dos trabalhadores da atividade (diretos e indiretos) e do território da população local (Fratucci, 2014).


A ocorrência desses diversos territórios dos agentes sociais do turismo sobrepostos no mesmo espaço pode ser analisada pela ótica da multiterritorialidade, tendo em vista a vivência e produção de múltiplos territórios (Haesbaert, 2004). Por ser uma prática social marcada pelo hibridismo, os territórios se sobrepõem subjugados às novas temporalidades e o resultado é que nada será como antes, considerando-se que a dinâmica territorial é sempre um processo contínuo de criação e recriação de territorialidades (Rodrigues, 2006).


Enquanto a multiterritorialidade pode implicar a passagem de um território (ou territorialidade) para outro, a transterritorialidade vai além: envolve não apenas o trânsito ou a passagem de um território para outro, mas a transformação efetiva dessa alternância em uma situação nova, muito mais híbrida com a vivência concomitante de múltiplos territórios, articulados e sobrepostos (Haesbaert; Mondardo, 2010).

Nesse contexto, o pensamento complexo nos ajuda a reconhecer as incertezas e desordens (Morin, 2005) da realidade espacial marcada pela multiterritorialidade contemporânea articulada reticularmente ou em territórios-rede (Haesbaert, 2004), tendo o fenômeno do turismo papel central nas (re)configurações espaciais nas escalas local e global (Fratucci, 2008).


No âmbito dos estudos do Turismo torna-se essencial o interesse pelas pessoas ao estudar a geografia de uma localidade, em qualquer escala. Entender o espaço urbano apenas como palco ou como mero pano de fundo para os acontecimentos não é suficiente, o que nos leva a olhar a cidade como um espaço vivido, grande propulsor e fomentador para os acontecimentos de ordem política, econômica e cultural no desenvolvimento das cidades, a partir de relações de poder exercidas pelo uso dos territórios.


Há uma infinidade de cidades numa cidade, uma multidão de microacontecimentos que (re)produzem o espaço a partir do indivíduo. No interior deste conjunto cada um pode inventar a sua cidade, escolhendo os lugares que lhe interessam e eliminando outros. O que não significa que o capital espacial seja o mesmo para todos, uma vez que as desigualdades são óbvias (Lévy, 2001).


Por este motivo não se deve limitar o debate das mobilidades turísticas somente aos turistas, pois a prática turística é apenas uma forma de mobilidade temporária. (Hall, 2008). O espaço apropriado pelo e para o turismo é maior que o território do turista, uma vez que é resultado do somatório dos territórios sobrepostos de todos os seus agentes sociais produtores Fratucci (2014), incluindo então os trabalhadores do turismo.


O fenômeno do turismo é multiescalar, multiterritorial, multidimensional, diversificado em sua atividade econômica, variável em segmentos de mercado, diverso sobre os setores das políticas públicas e seus agentes sociais podem mudar a partir de determinadas realidades observadas. Nesse sentido, entendendo a lógica multiterritorial do turismo e a diversidade de seus estudos, propomos entender os trabalhadores do turismo como todos os indivíduos que exercem determinadas funções relacionadas à atividade turística, direta ou indiretamente, dentre as mais diversas dimensões e abordagens “dos turismos”. Esta definição deve ser guiada e embasada pelo pesquisador e/ou pela linha de uma área de conhecimento, a partir de uma matriz teórico-filosófica, a fim de justificar e dar legitimidade a determinadas escolhas.


Portanto, a pesquisa se debruçou sobre os trabalhadores do turismo de Arraial do Cabo que foram observados a partir da multiterritorialidade em dois momentos: os movimentos pendulares diários, de lazer e sazonais e seus processos de multi/transterritorialidade e mobilidades.


Vale destacar alguns “achados” que o campo nos permitiu observar à luz da teoria: os territórios de lazer, o protagonismo para o olhar do trabalhador e seus processos de transterritorialidade.


Ao levar em consideração que um determinado destino turístico, nesse caso Arraial do Cabo, é intensamente apropriado pelo e para o turismo, estudar os territórios de lazer do trabalhador nos pareceu fundamental. Isso porque o trabalhador se encontra com o turista e a dicotomia entre as duas intensidades das lógicas funcionais e simbólicas se confrontam, demonstrando que o trabalho no contexto do turismo interfere e é interferido nas/pelas estruturas de poder nesta realidade multiterritorial; e isso é instigante.


Os fluxos dos trabalhadores do turismo não se restringem somente aos movimentos pendulares diários, mas sim a todos os tipos de mobilidades, uma vez que nossas próprias identificações e referências espaço-simbólicas são feitas não apenas no enraizamento, no fixo, mas também na mobilidade (Haesbaert, 2004), incluindo os territórios de lazer. Nesta linha, a pesquisa nos demonstrou que os locais que os trabalhadores do turismo deste município frequentam são muito similares, resultado de deslocamentos articulados em rede, porém dentro de um tipo de bolha onde têm (todas) suas necessidades básicas (e suas práticas culturais) garantidas, em uma multiterritorialidade mais funcional do que simbólica.


Somado a isso, a carência da oferta de lazer e cultura do município (fato também constatado pela pesquisa) limita as articulações da maioria dos trabalhadores, por isso suas mobilidades se apresentam restritas, basicamente em sua condição da possibilidade (primeira categoria/virtualidade da mobilidade, segundo Lévy (2001) - a possibilidade de escolher entre os lugares para acessar a partir do deslocamento revelam-se decisivos). Por isso, é inevitável a correlação entre a vivência de múltiplos territórios (mais rígidos) e a aparente multiterritorialidade articulada em territórios flexíveis do turista, havendo, então, um confrontamento da imobilidade do trabalhador e mobilidade nítida do turista.


Ao considerar o espaço urbano do município como um todo, seria fantasioso afirmar que o aumento do fluxo de turistas estimularia o investimento e crescimento da cidade (discurso amplamente proferido para justificar certas ações políticas). Portanto, indagamos: Por que seria do interesse do poder público estimular uma maior oferta de lazer e cultura em Arraial do Cabo, se o fluxo de turistas que vai à cidade está procurando seus recursos naturais, e não estruturas de lazer e cultura que já possuem em seus territórios de origem?


O espaço urbano de Arraial do Cabo não é, de certa forma, segregado fisicamente, por não existirem lugares destinados para o turista e para o morador. Porém, ao passo que a oferta de atividades de lazer não contempla os moradores/trabalhadores, existe uma exclusão simbólica do espaço, resultado da preferência da manutenção de infraestruturas turísticas visando mais especificamente os turistas do que uma efetiva ação para a população.


Sobre a transterritorialidade, pontuamos duas colocações que emergiram do campo e que merecem aprofundamento no âmbito do trabalhador. O primeiro é exatamente o encontro entre o turista e o trabalhador, pois ao realizarem trocar culturais simbólicas, os indivíduos “estão-entre” territórios. Outro ponto é sobre a capacidade de um mesmo indivíduo estar atuando em territorialidades (quase) simultâneas ao confundir seus territórios de trabalho com o doméstico e de lazer, relacionados dialogicamente (por exemplo, pessoas que moram e trabalham em meios de hospedagem). Eles estão transitando por territórios, e ao serem observados a partir do território do turismo, seus processos de des/reterritorialização podem se tornar mais complexos, podendo, assim, auxiliar no avanço da compreensão mais a fundo do fenômeno do turismo com um todo.



 

Referências:

Fratucci, A. C. (2008). A dimensão espacial nas políticas públicas brasileiras de turismo: as possibilidades das redes regionais de turismo. 308 f. Tese (Doutorado), PPGEO/UFF, Niterói (RJ).

Fratucci, A. C. (2014). Turismo e território: relações e complexidades. Caderno Virtual de Turismo. Edição Especial: Hospitalidade e políticas públicas em turismo. 14(1).

Haesbaert, R. (2004). O Mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

Haesbaert, R. (2007). Território e Multiterritorialidade: um debate. GEOgraphia, 9(17).

Haesbaert, R., & Mondardo, M. (2010). Transterritorialidade e antropofagia: territorialidades de trânsito numa perspectiva brasileiro-latino-americana. GEOgraphia, 12(24).

Hall, C. M. (2008). Of time and space and other things: laws of tourism and the geographies of contemporary mobilities. In: Peter M.Burns, & Marina Novelli. Tourism and mobilities: local-global connections. Oxfordshire: CABI International. pp. 15-32.

Lévy, J. (2001). Os novos espaços da mobilidade. GEOgraphia. 3(6).

Morin, E. (2005). Ciência com consciência. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

Raffestin, C. (1993). Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática.

Rodrigues, A. B. (2006). Turismo e territorialidades plurais: lógicas excludentes ou solidariedade organizacional. In: América Latina: cidade, campo e turismo. Amalia Inés Geraiges de Lemos, Mónica Arroyo, & María Laura Silveira. CLACSO, Diciembre.

Santos, M. (2008). Espaço e Método. 5ª ed. São Paulo: EdUSP.

Telles, D. H. Q., & Valduga, V. (2015). O “espaço turístico” a partir da multiescalaridade territorial: Complexidade e sistematização conceitual. ABET, 5(3), set./dez.

 

A pesquisa e discussões teóricas apresentadas são oriundas da dissertação de mestrado (PPGTUR/UFF) de Juliana Carneiro intitulada “A multiterritorialidade dos trabalhadores do turismo de Arraial do Cabo (RJ)”.

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