Por que o Estado brasileiro periferiza trabalhadores do Turismo Rural?
- Labor Movens
- 21 de jun.
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Fernanda Costa da Silva
Esta é uma questão para a qual busco resposta, sobretudo, desde 2013, quando iniciei uma década de trabalhos junto a agricultores familiares (AFs) e a povos e comunidades tradicionais (PCTs) - descritos, respectivamente, pela Lei n° 11.326/2006 e pelo Decreto n° 6.040/2007. Nos últimos quatro anos, aprofundando estudos sobre o tema, venho obtendo respostas que indicam que tal processo de periferização é feito de modo deliberado: se não por ação, pela falta dela.
A periferização referenciada ocorre formalmente a partir de instrumentos de Estado (ou ferramentas), os quais consistem em dispositivos institucionais do Estado brasileiro, como leis, decretos, portarias, instruções normativas jurídicas, políticas públicas, projetos, programas, planos e assemelhados, publicados e aplicados oficialmente por governos, em território nacional. Eles possuem a capacidade de ilustrar como o Estado representa e/ou serve atores sociais, em maior ou menor proporção, bem como elucidam os problemas sobre os quais a sociedade se debruça em resolver (Capella, 2018; Muller & Surell, 2015).

De modo amplo, estudar este tema é relevante, visto que 25,5 milhões de pessoas (14%) vivem nas áreas rurais do Brasil (IBGE, 2022), e deste total 77% são agricultores familiares. Essas informações são relevantes, uma vez que o Turismo Rural é executado predominantemente por AFs e tido para diversos autores, assim como também pelo IBGE, como uma forma de contenção do êxodo rural e de dinamicidade para os recortes não urbanos. Em complemento, seu êxito em auxiliar na contenção de movimentos de êxodo rural também está relacionado ao fato de que nas comunidades que conseguem se inserir de forma exitosa no setor “é comum a tendência ao reconhecimento do valor de seus recursos naturais e de seu patrimônio cultural” (Pugen et al., 2019, p. 198). Sobre as informações de oferta do segmento em nível nacional, o número mais atualizado em publicação oficial da qual se tem acesso advém do IBGE, o qual estimou, em 2017, a existência do Turismo Rural em 1589 municípios, cerca de 30% dos municípios brasileiros (IBGE, 2017). Nessa conjuntura, a própria ausência de dados atuais já evidencia uma forma de periferização.
Do ponto de vista legal, o Turismo Rural é referenciado na Lei n° 13.171/2015 (Brasil, 2015). A prática desta segmentação, a partir do instrumento citado, dá-se intrinsecamente relacionada à agricultura familiar. Quando do estabelecimento da primeira gestão de um ministério exclusivo para o turismo, em 2003, a conceituação do segmento voltou-se para evidenciar sua prática como sendo aquela verificada quando: a) as atividades turísticas desenvolvidas se passem no meio rural; b) tal espaço esteja comprometido com a produção agropecuária; e c) houver intenção de se valorizar patrimônios naturais e culturais de comunidades rurais (Brasil, 2010). Assim, o Turismo Rural seria diferenciado, em teoria, em relação a outros segmentos, também executados no meio rural, a saber: a) do Turismo no Espaço Rural, porque este não possui comprometimento com a produção agropecuária; b) do Agroturismo, porque este ocorre quando as atividades são internas à propriedade, bem como é executado durante o tempo livre das famílias agrícolas, com possibilidade de eventuais contratações externas de mão de obra; e c) do Turismo Rural na Agricultura Familiar (TRAF), porque este se dá quando somente a família é o cerne da oferta de serviços turísticos, sendo que esta mantém suas atividades econômicas típicas da agricultura familiar, mesmo inserida no mercado turístico.
Pelo exposto, do ponto de vista legal, quando ocorre o tratamento em igual patamar a agricultores familiares (AFs) e a produtores rurais inseridos na perspectiva do turismo, fere-se o princípio da isonomia (Brasil, 1988). Isso porque a equiparação entre AFs e produtores rurais em um mesmo dispositivo legal evidencia o não atendimento ao princípio da igualdade material, qual seja, a obrigatoriedade de se tratar os desiguais na medida das suas desigualdades, visando-se o alcance da justiça social.
Do ponto de vista prático, tal tratamento pode desencadear uma um série de problemas a trabalhadores já mais fragilizados social e economicamente porque: a) abordar o Turismo no Meio Rural como sendo igual aos demais segmentos é admitir a possibilidade de se gerar benefícios a pessoas que não são, necessariamente, trabalhadores da AF (por exemplo, no âmbito de impostos, aposentadoria em regime especial e linhas de crédito); b) igualar trabalhadores de Turismo Rural aos trabalhadores de Agroturismo e de TRAF pode gerar distorções de tratamento legal, especialmente do ponto de vista das questões trabalhistas e previdenciárias (ou seja, parece não ser justo que uma propriedade de Turismo Rural, a qual pode gozar de contratações externas, de acordo com a teoria, tenha o mesmo tratamento que propriedades de Agroturismo e de TRAF, as quais, também de acordo com a teoria adotada pelo próprio Estado, não gozam de tal possibilidade).
Entender as implicações citadas é relevante porque a partir de 2003, dada a criação do Ministério do Turismo (MTur), tem se formado um arcabouço legal no setor turístico, o qual não preconiza, na prática, um desenvolvimento equânime, quando das relações entre os diferentes grupos sociais envolvidos, tal qual foi indicado ser necessário pelo próprio Estado brasileiro (Costa da Silva, 2021), desde o lançamento do primeiro Plano Nacional de Turismo (Brasil, 2003). Especificamente ao se analisar o teor de instrumentos de Estado acerca do que se chama de Turismo Rural, nota-se um distanciamento entre as especificidades da teoria adotada pelo Estado, através do Ministério do Turismo (Mtur), e o conteúdo dos marcos legais afins ao tema, sendo estes também afixados pelo Estado (através da Câmara dos Deputados e do Senado Federal).
Desse modo, em um primeiro momento, chama a atenção a falta de conexão entre teoria formalmente adotada em território nacional (Brasil, 2010) e instrumentos de Estado. Nesse cenário, o mais grave reside no fato de que tal problema é gerado por um mesmo ator: o Estado. Esta percepção é ratificada, ao se observar o apanhado de instrumentos de Estado em vigor, sancionados tanto por governos mais à esquerda ou à direita: desde a criação do Ministério do Turismo há descontinuidade de aplicações de instrumentos de Estado, desde o planejamento até a operação destes (Irving et al., 2018).
Em face do contexto apresentado, mediante um levantamento on-line de arquivos em fontes primárias e secundárias na busca por instrumentos vigentes afins ao Turismo Rural (a íntegra dos documentos vigentes analisados está disponível no portal do Ministério do Turismo e todos os processos de tramitação podem ser consultados nos portais oficiais da Câmara e do Senado Federal), destacam-se alguns documentos, cujas análises são apresentadas de maneira resumida no Quadro 1 a seguis análises apresentadas neste texto consistem em um recorte de tese de doutorado em desenvolvimento e, portanto, há aporte teórico e analítico mais aprofundado em curso para posterior publicação).
Quadro 1 – Instrumentos de Estado Vigentes para o Turismo Rural
Instrumento | Resumo do teor afim ao Turismo Rural | Análise e observações |
Lei Complementar (LC) n° 123/2006 (Brasil, 2006) (popularmente conhecida como Lei do MEI, referência a “Microempreendedor Individual”) | Aplicável à configuração de AF com situação regular e, por consequência, tais atores podem constituir atividade de Turismo Rural a partir de um MEI, gerando assim um Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ). Este oportuniza acesso a outras políticas públicas – como linhas de créditos. | Observando-se instrumentos assessórios, há mais condições impostas, para além das previstas na LC: para se manter a seguridade especial, deve-se proceder com a exploração de atividade turística na propriedade em escala de faturamento menor do que a da atividade agropecuária, por não mais de 120 dias ao ano, intercalados ou corridos (conforme Lei 11.718/2008 e Lei 8.212/1991); e produtor rural pessoa física poderá realizar contratação de trabalhador rural por pequeno prazo para o exercício de atividades temporárias (como turismo), dentro do período de um ano, mas, se superar dois meses, tal atividade converte-se em contrato de trabalho (conforme Lei 11.718/2008). Pelo exposto, pondera-se que tal quadro dificulta a formalização da atividade de TR em regimes de AF, especialmente pelo tempo de serviço possível (120 dias/ano), o qual tende a ser maior, especialmente em propriedades que operam durante todo o ano e não somente por temporada. |
Política Nacional de Turismo (Brasil, 2008) | Conjunto de leis e normas voltada ao ordenamento turístico nacional. | Até 2024, avaliava-se que sua redação impunha uma dificuldade e/ou impossibilidade de formalização de trabalhadores de pequeno porte, quando estes prestavam serviços de cadastro obrigatório, previsto pelo Cadastur, visto que este solicitava, obrigatoriamente, a existência de Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ). Como consequência, poderia se configurar um entrave, especialmente para AFs (bem como para PCTs), para os quais nem sempre é vantajoso e/ou necessário estabelecer um CNPJ, já que vários pontos e/ou roteiros atuam no mercado apenas em regime de temporada ou com grande sazonalidade e, também por isso, a manutenção mensal da taxa de CNPJ configura-se como onerosa. A inexistência de tal Cadastro poderia gerar fiscalização, passível de multas. Em adição, a falta do Cadastro inviabilizava acesso a outras políticas públicas, como linhas de crédito (ex: Fundo Geral do Turismo – Fungetur). A partir de dezembro de 2024, com a atualização do instrumento em questão, sua redação passou a indicar ser possível atuação no âmbito do Turismo Rural sem a necessidade de se constituir um CNPJ. Contudo, passados seis meses de publicação da nova redação do instrumento, o Cadastur não está adaptado para tal inclusão (tampouco, há previsão para tanto). Não menos importante, cabe destacar o fato de que trabalhadores de Turismo Rural caracterizados como pescadores artesanais ainda não poderão atuar na atividade turística durante o seguro defeso, mesmo usando um CPF no Cadastur, sob pena de perder benefício de seguridade social. |
Portaria n° 40/2023 (Brasil, 2023) | Estabelece as regras e os critérios para a formalização de instrumentos de transferência voluntária de recursos, tendo como principal critério a categorização turística. | Embora sua reformulação tenha melhorado a redação, ainda assim, para algumas iniciativas de fomento ao setor, tomar como primordial o sistema de categorização turística como critério poder ser inadequado, porque tal metodologia pode ratificar uma condição de precariedade de acesso a recursos, para destinos já menos desenvolvidos, os quais, não raras vezes, são de predominância territorial rural ou rururbana, como se pode verificar no Mapa do Turismo Brasileiro. |
Especificamente sobre a Política Nacional de Turismo, ainda é oportuno informar que a referida atualização foi concretizada com uma proporção maior do que a planejada. Isso porque, inicialmente, fez-se apenas uma proposta de atualização relativa a uma questão do fundo de aviação da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), a ser tratada como uma pauta urgente. Porém, no transcorrer do processo, várias outras pautas foram apensadas. Nos registros dos trabalhos, foi possível perceber a disputa de poder sobre a atualização do teor do instrumento, por parte de diferentes campos políticos: ao passo que por parte de alguns parlamentares havia tensionamento para que a matéria fosse analisada com mais cautela, outros espectros políticos movimentaram-se para haver mais celeridade. Daí, talvez, advenha a precariedade da escrita de várias passagens, como a alusiva ao segmento de Turismo Rural, atualmente equiparado ao Turismo no Espaço Rural no instrumento em questão. Há de se destacar, por fim, duas constatações sobre este instrumento e sua ralação com o Turismo Rural: o Poder Executivo poderia vetar passagens da matéria, o que ocorreu para alguns temas (como os alusivos a operações de hospedagens e agenciamento), mas não o fez para o segmento Rural; e após a nova redação publicada, o governo vem disseminando informações sobre os “avanços” para o Turismo Rural, suprimindo o fato de que as vantagens também foram concedidas a trabalhadores de patamar distinto dos AFs inseridos no Turismo Rural (ou seja, para atores não caracterizados como trabalhadores de Turismo Rural, conforme lei vigente). Um exemplo pode ser conferido em matéria do Ministério do Turismo.
De modo geral, ao se analisar o teor dos instrumentos supraexpostos, vê-se que o Estado tem atendido a determinados grupos, em detrimento de outros, elucidando-se aí, cada vez mais, processos estruturados por relações de poder, portanto horizontais, configurando não apenas hierarquias, mas desvantagens (Santos, 2018). No contexto apresentado, nota-se não apenas o estabelecimento, mas o fomento a um cenário de continuidade de relações de poder desiguais (Raffestin, 1993), as quais “dificultam a ascensão, o desenvolvimento e a melhoria da qualidade de vida de segmentos socialmente vulneráveis ou tradicionalmente excluídos” (Pires, 2019, p. 16). Tais relações de poder díspares evidenciam um referencial setorial do turismo brasileiro dotado de práticas excludentes e/ou elitizadas, especialmente para seus trabalhadores já mais fragilizados na organização econômica e social – como agricultores familiares (AFs) e moradores e/ou trabalhadores de comunidades rurais também voltados à prática atuação no turismo.
REFERÊNCIAS
Brasil. (2003). Ministério do Turismo. Plano Nacional de Turismo: 2003-2007. Brasília, DF.
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Brasil. (2006). Lei Complementar n° 123, de 14 de dezembro de 2006. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 14 dez. 2006. Disponível em: <h ttps://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp123.htm>. Acesso em: 03 mai. 2023.
Brasil. (2010). Ministério do Turismo. Secretaria Nacional de Políticas de Turismo, Departamento de Estruturação, Articulação e Ordenamento Turístico, Coordenação Geral de Segmentação. Turismo Rural: orientações básicas. Brasília, DF: Ministério do Turismo.
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Capella, A. C. (2018). Formulação de Políticas Públicas. Brasília: Enap.
Costa da Silva, F. (2021). Legislação brasileira relacionada ao turismo: ações estatais promotoras da precarização do trabalho. In: Anais do 2° Seminário Virtual: perspectivas críticas sobre o trabalho no turismo. Arraias, TO: UFT. p. 253-264.
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Pires, Roberto Rocha C. (Org.). Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas. Rio de Janeiro: Ipea, 2019.
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Raffestin, C. (1993). Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática.
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