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Relato de uma cozinheira

Renata de Paula | Cozinheira e criadora da página @machismonacozinha



Crédito: Shondaland (2020).


Acredito que comecei a perceber o machismo na cozinha logo quando entrei no curso de Gastronomia. Um ambiente ‘masculino’, professores faziam comparação de comida com sexo, assédio com algumas alunas e as brincadeiras eram quase sempre relacionadas ao corpo feminino. No curso que fiz havia muitas mulheres, mas quando comecei a trabalhar em uma cozinha profissional percebi que já não havia tantas assim, então a objetificação e as brincadeiras eram ainda piores. Me sentia um fruto perdido no meio do clube dos homens. Como eu passava horas naquele lugar, com aquelas mesmas pessoas, eu me sentia na obrigação de fazer parte da equipe, provar a minha capacidade de estar ali, e eu via que me mostrar feminista só me afastaria mais.


Lembro que às vezes escutava ‘Melhor não contar essa história com a Re aqui, ela é mulher’; e isso me levou a rir de piadas que me deixavam desconfortável, baixar a cabeça para escutar histórias absurdas e até inventar uma opinião quando falavam de mulheres como objetificação. Eu estava seguindo esse comportamento até o dia em que aconteceu comigo, e depois com as (poucas) mulheres que trabalhavam comigo. Vi que se juntar a eles, ‘se tornar igual’, não iria me levar a nada, eu iria continuar sendo mulher e era assim que eles me viriam sempre.

Ser mulher é isso, mesmo participando do clube do bolinha, você também é alvo de assédio. Encoxadas no meio do serviço, flertes, perguntas desconfortantes, interesses na sua vida pessoal, convites para sair após o trabalho, tantos outros. Mas nosso objetivo é apenas o trabalho, acabamos ignorando esses acontecimentos e torcemos para que sejam apenas passageiros. Infelizmente não é. Às vezes diminui, até entrar outra menina nova, ou piora, piora muito e se torna um abuso sexual, ou até mesmo estupro.

A denúncia não é feita por medo de atrapalhar sua posição dentro do restaurante. Afinal, muitos desses assédios o(a) Chef presenciou e até mesmo criou, o que dificulta ainda mais a denúncia. O RH não gosta muito de se envolver nesses assuntos; a cultura dentro de uma cozinha é diferente de uma empresa comum, se for colocar o tanto de erros que poderiam ser pronunciado no sindicato, não haveria mais restaurante no mundo. Então cobrir o acontecimento e dizer que é “homem sendo homem”, ou “é apenas brincadeira, não leve tão a sério”, é a maneira mais fácil de eles “resolverem” o assunto.


Vejo que uma das causas para haver mais mulheres no curso do que trabalhando é a cultura de grandes chefs dizerem que não trabalham com mulheres porque são sensíveis demais. Isso dissemina e é ainda pior quando é reproduzido por uma mulher.

Chefs mulheres que tomam essa atitude normalmente querem forçar uma autoridade dentro da cozinha, tentando ser alguém que ‘eles’ respeitam. Elas acabam cometendo os mesmos erros, dizem que preferem homens na cozinha porque ele são mais focados, não fazem fofoca ou são fortes para pegar um caixa de cebola sozinhos. Isso tudo para ganhar respeito.

Acho que em qualquer trabalho é visível que homens tendem a ter mais respeito com outros homens, e na cozinha isso é ainda pior, pois o desrespeito é escancarado. Quando digo que é escancarado é porque muitos homens assumem que não aceitam receber ordens de uma mulher, já vi RH também dizer que não vale a pena demiti-los por essas “coisinhas”, pois são cozinheiros de meia idade com pensamentos conservadores que nunca vão ser diferentes. E por tanta falta de respeito, é até comum ver uma cozinheira virando Sous Chef, sub gerente, mas não uma Sous Chef virar Chef de cozinha.

A dificuldade que tive de ter meu primeiro emprego na cozinha, a contratação exclusiva de homens era o que mais via nos anúncios de emprego. Por consequência, a confeitaria é um ambiente seguro para as aspirantes na profissão; não é o que a maioria quer, mas é como se fosse uma certeza que você conseguirá emprego. Da mesma forma que homens ganham pontos para entrar na cozinha quente, especialmente carnes, as mulheres ganham pontos para a confeitaria. As oportunidades na confeitaria ou no Garde Manger (entrada fria) muitas vezes é apenas para mostrar trabalho e provar que é capaz para estar na cozinha quente, mas nem sempre tem sucesso. É muito mais fácil contratar outra pessoa, que siga o perfil que ‘eles’ querem, do que fazer a alteração entre praças.



Existe também um preconceito com confeiteiras dentro da cozinha, pois muitos acham que elas não têm habilidade para outras praças. No Brasil, muito disso vem pela a confeitaria ter muita precisão nos detalhes e delicadeza, o que faz ter esse rótulo ‘feminino’, um combate com um cozinheiro “bad-ass” que tem medo de se mostrar delicado. Muitas dessas confeiteiras são mais completas gastronomicamente do que muitos cozinheiros “bad-ass”.

Gastronomia é dedicação, é estudo e principalmente comprometimento. A adrenalina da pressão na hora da entrega dos pratos é viciante, e não existe cozinheiro(a) que nunca trabalhou mais de 10 horas em um dia. Para ser um grande cozinheiro(a), requer muita paixão. Infelizmente, dentro da cultura que a gastronomia carrega, existe uma dominação por homens, para separar a cozinha caseira, dominação por mulheres, da profissional. E vem trazendo isso até hoje. É frustrante ver tantas mulheres com potencial serem desconsideradas, desistirem de ser cozinheiras por esse machismo dentro da cozinha. Imaginem o tamanho disso, que faz essas mulheres abandonarem o que elas mais amam fazer, que é cozinhar.

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