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Por que a pandemia da COVID-19 teve efeitos desproporcionais sobre as trabalhadoras do turismo?

Sarah Marroni Minasi¹ & Elaine da Silveira Leite²


“Manda foto de agora”: Instantes do cotidiano das mulheres do turismo na pandemia

Fonte: Imagens cedidas por Carolina Stoll, Luana Oliveira, Lucimari Pereira, Juliana Medaglia, e Marie Gimenes-Minasse. Montagem elaborada pelas autoras (2020).



O problema:


A pandemia da COVID-19 teve efeitos desproporcionais sobre as trabalhadoras do turismo afetando gravemente sua situação econômica, e sua condição emocional, aprofundando as desigualdades de gênero pré-existentes. Portanto, salientamos a importância em discutir como a pandemia afetou o setor de turismo que emprega majoritariamente mulheres, destacando a expressão de George Megalogenis, “recessão pink”, que ganhou proeminência, recentemente, para entender as dimensões desta crise.


O coronavírus causou desemprego em massa e alterações nas formas e relações de trabalho, em diversos setores da economia. Contudo, o que chama a atenção é observar que as mulheres estão os mais afetados pela atual crise pandêmica.


A presença feminina é maior naqueles segmentos econômicos que exigem interação social direta, nos serviços e no comércio, e de forma marcante no turismo. No Brasil, temos um protagonismo da força de trabalho feminina no turismo. Dada as características do setor, foi um dos mais afetados pela pandemia (Coelho & Mayer, 2020). Ainda que, as perdas econômicas sejam incalculáveis, é estimado que o PIB do setor, em comparação com 2019, tenha um decréscimo de R$116,7 bilhões, para 2020-2021 (FGV, 2020).



Os fatos:


· Quase metade da população mundial em idade ativa são mulheres, o que representa aproximadamente 5 bilhões de pessoas. Contudo, somente 50% dessas mulheres, de fato, estão inseridas no mercado de trabalho, em comparação com quase 80% da força de trabalho masculina (OMT, 2020). A participação feminina no mercado de trabalho não só é menor, como se caracteriza pela informalidade. E, quando se analisa o setor formal, as mulheres sofrem com a diferença salarial, até quando ocupam os mesmos cargos e com níveis de escolaridade iguais aos homens.


· Dados da Organização Mundial do Turismo mostram que 54% dos empregos mundiais do setor são ocupados por mulheres (OMT, 2019). O número é mais expressivo no recorte do continente americano como um todo, em que as mulheres ocupam 57% dos empregos (OMT, 2019). No Brasil, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2019) aproximadamente 52% dos empregos no turismo são ocupados por mulheres. Contudo, as trabalhadoras do turismo estão concentradas em empregos de baixo nível hierárquico e salarial e sub-representadas nos níveis mais altos de gestão. O que significa que a participação das mulheres embora quantitativamente superior, mas qualitativamente desigual, revelando a situação precária das relações de trabalho.


· Muitas mulheres pararam de trabalhar devido a Covid-19, por estarem em empregos precários e em setores mais afetados pela pandemia (como hotelaria, lazer e turismo) (Savage, 2020). Devido à natureza de seus empregos, para muitas mulheres não existe a opção pelo teletrabalho. Nos EUA, cerca de 54% das mulheres empregadas no turismo não conseguem trabalhar de casa. No Brasil, essa porcentagem sobe para 67% (ILO, 2020). Segundo o Australian Bureau of Statistics, o turismo, grande empregador de mulheres na Austrália, perdeu um terço de sua força de trabalho desde março deste ano (Crabb, 2020).


· As mulheres tendem a assumir mais tarefas domésticas não remuneradas do que os homens – cerca de 2,7 horas por dia a mais (Georgieva et al., 2020). Um efeito diferencial nas mulheres, que fornecem a maior parte dos cuidados informais dentro das famílias, o trabalho não remunerado (Federici, 2019). No início da pandemia, havia grande expectativa de que a mudança global do exercício do trabalhado remunerado do ambiente corporativo para o domiciliar, poderia significar que os cuidados com os filhos e as tarefas domésticas seriam divididos de forma mais equitativa entre os casais. Contudo, as mulheres assumiram as responsabilidades do cuidado familiar decorrentes das medidas de paralisação, como o fechamento das escolas e o cuidado com familiares idosos e vulneráveis.



O que isso significa:


Além das perdas pelas restrições nos deslocamentos, estamos falando de um setor que tem pouca aderência ao teletrabalho devido às suas próprias características. Ao mesmo tempo, considerando as situações em que as trabalhadoras do turismo exercem o trabalho remoto é preciso adicionar outro elemento à equação. A atual pandemia escancarou a desigualdade na divisão das tarefas domésticas, mostrou que na maioria das famílias esta incumbência recai sobre a mulher. Com o fechamento de creches e escolas, as trabalhadoras sentiram intensamente a sobrecarga da dupla jornada (Hochschild, 1989), aprofundando ainda mais a situação precária da realização do seu trabalho.


Durante os últimos meses, o que se pensou ser uma alternativa positiva para o exercício das atividades profissionais das mulheres, resultou na constatação de que a desigualdade na realização das atividades inerentes ao lar só aumentou na pandemia. Para Hochschild (1989) ao longo do tempo a mulher esteve diante do dilema e tensão da dupla jornada. Expressa na pressão de ser uma supermãe, reduzindo horas de trabalho profissional, ou ser uma super profissional reduzindo o tempo dedicado aos afazeres domésticos. Para Bonelli (2004) as mulheres precisam de um grande empenho em termos de trabalho emocional para sustentar a ideologia de um relacionamento familiar e de mulher bem-sucedida.


Essa sobrecarga que acumula duas jornadas de trabalho é intensificada pela gestão emocional do contexto ao qual as mulheres estão expostas. Como elucidado acima – ora pelo temor do desemprego, que atinge o setor ora por ter que desistir da carreira ou profissão, renunciando ao seu autossustento, por não conseguir conciliar as jornadas. Ainda, a mulher precisa lidar com o trabalho das emoções diante da opressão provocada pelo exercício dessa dupla jornada. E isso, tem um custo emocional elevado, convertendo-se em uma terceira jornada de trabalho (Bonelli, 2004).


Os efeitos econômicos e sociais que tendem a reduzir a igualdade de gênero (ou o caminho para ela) têm impacto negativo em toda a sociedade. Os avanços conquistados em termos de espaço no mercado de trabalho regrediram ao patamar de mais de 30 anos atrás (Georgieva et al., 2020). McKinsey (2020) aponta que na atual crise as mulheres têm quase duas vezes mais chance de perder o emprego do que os homens. Nesse contexto, entre a recessão do próprio setor do turismo e o cenário de desigualdade, que muitas vezes obriga as mulheres a voltar ao âmbito do trabalho doméstico, nota-se a recessão pink, intensificada pela pandemia.


As mulheres assumem uma parcela maior de trabalho não remunerado em casa. A sobrecarga de trabalho não remunerado pode limitar sua oportunidade de exercer trabalho remunerado. E, assim as mulheres carregam, de forma desproporcional, o peso dessa sobreposição de jornadas.


Agradecimentos:


Não poderia faltar o mais sincero agradecimento às mulheres incríveis que contribuíram com as fotografias na tentativa de ilustrar o cotidiano permeado pelas jornadas de mãe e profissional. Muito obrigada queridas Carolina Stoll, Luana Oliveira, Lucimari Pereira, Juliana Medaglia, e Marie Gimenes-Minasse.




 


Referências

Bonelli, M. D. G. (2004). Arlie Russell Hochschild e a sociologia das emoções. Cadernos Pagu, (22),357-372.

Coelho, M. de F., & Mayer, V. F. (2020). Gestão de serviços pós-covid: o que se pode aprender com o setor de turismo e viagens?. Gestão E Sociedade, 14(39), 3698-3706. https://doi.org/10.21171/ges.v14i39.3306

Crabb, A. (2020). Coronavirus has left Australian women anxious, overworked, insecure — and worse off than men again. ABC News.Disponível em:https://www.abc.net.au/news/2020-05-24/coronavirus-has-set-back-progress-for-women-workplace-equality/12268742

Federici, S. (2019). Mulheres e caça às bruxas. Boitempo: São Paulo.

Fundação Getúlio Vargas.Impacto econômico do COVID-19 propostas para o turismo brasileiro. Disponível em:https://fgvprojetos.fgv.br

Georgieva, K., Fabrizio, S., Lim, C.H. & Tavares, M. A. (2020). COVID-19 e as diferenças de gênero. Fundo Monetário Internacional. Disponível em: https://www.imf.org/pt/News/Articles/2020/07/20/blog-the-covid-19-gender-gap

Hochschild, A. R. (1989). he second shift. Avon Books: New York.

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. (2019).Mercado de trabalho no setor turismo. Disponível em:http://extrator.ipea.gov.br/

International Labour Organization. (2020). ILOSTAT database [Labour Forse]. Available from https://ilostat.ilo.org/data/.

McKinsey Company (2020). Women in the workplace. Disponível em: https://www.mckinsey.com/

Megalodenis, G. (2020). Keneally has picked the wrong fight for this pink-collar recession. The Sundy Morning Herald. Disponível em: https://www.smh.com.au/national/keneally-has-picked-the-wrong-fight-for-this-pink-collar-recession-20200508-p54r0p.html

Organização Mundial do Turismo. (2019). Global Report on Women in Tourism – Second Edition, UNWTO, Madrid, DOI:10.18111/9789284420384.

Organização Mundial do Turismo. (2020). UNWTO World Tourism Barometer, May 2020 – Special focus on the Impact of COVID-19 (Summary), UNWTO, Madrid, DOI: https://doi.org/10.18111/9789284421817

Savage, M. (2020). How COVID-19 is changing women’s lives. BBC. Disponível em: https://www.bbc.com/worklife/article/20200630-how-covid-19-is-changing-womens-lives



 


¹ Doutoranda em Turismo e Hotelaria na Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Bolsista Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Mestra em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Lattes. E-mail: sarahminasi@gmail.com


² Professora do Programa de Pós-graduação em Sociologia e do Departamento de Sociologia e Política da Universidade Federal de Pelotas – UFPel. Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Lattes. E-mail: esleite20@gmail.com

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