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Para um debate sobre o estranhamento do trabalho no turismo

Renan Augusto Moraes Conceição


Cena do Filme "Tempos Modernos"


Motivado por uma recente publicação de Paulo Meliani aqui no Labor Blog, gostaria de aproveitar a discussão iniciada no texto Subordinação ao Capital e Alienação do Trabalho no Turismo para tecer algumas considerações sobre o tema do estranhamento. Minha intenção é criar uma série de argumentos para que seja possível discutirmos esse assunto que, ao mesmo tempo em que é um termo muito utilizado, é também, de fato, pouco explorado teoricamente quando o trazemos para a temática do turismo. Assim, o ótimo texto de Meliani (2020) me fez refletir muito, principalmente o parágrafo final, em que se apresenta o seguinte:


No turismo, a alienação do trabalho vai além desses estranhamentos do trabalhador com seu trabalho e com seu objeto de trabalho, acontecendo também em função da natureza da atividade, ou seja, pelo estranhamento que há entre o trabalhador e o turista, entre o indivíduo que trabalha e aquele que consome “seu” lazer. Além disso, como os espaços do turismo são de uso exclusivo daqueles que podem neles consumir, há um estranhamento do trabalhador com o espaço, pois, muitas vezes, o seu local de trabalho é um espaço de seu próprio lugar, aquele em que nasceu e se criou, e que agora, em função do turismo, só pode ser vivido por ele como lugar de trabalho (MELIANI, 2020, s/p).

Meliani, certeiramente, posiciona o estranhamento do trabalho em turismo como uma desefetivação (a palavra surgirá mais à frente nesse texto, através de Marx) não somente do próprio trabalho realizado pelo trabalhador em turismo, mas uma desefetivação mesmo de seu lugar de vida, de seu espaço habitual. Ou seja, tanto o trabalho que realiza como o lugar onde realiza esse trabalho lhe são algo como estranhos, apartados de seu entendimento de mundo, mesmo sendo o próprio local de vivência. Mesmo sendo o parágrafo final da publicação de Meliani, o assunto abre-se enormemente para continuação, o que, humildemente, procuro oferecer com esse texto.


O tema do estranhamento e alienação é de fundamental importância para se entender o trabalho na sociedade capitalista e, sobremaneira, o trabalho em turismo nessa mesma sociedade. Dessa forma, creio ser necessário destrinchar o assunto em termos teóricos, propiciando condições de ampliar e fundamentar o conhecimento a partir do próprio Marx, fornecendo entendimento sólido aos estudos em trabalho em turismo. O ponto de partida para se compreender o estranhamento encontra-se no elemento primordial do sistema capitalista: a mercadoria.


N’O Capital, livro I, logo em seu primeiro capítulo, encontramos que, por ocultar as características sociais do trabalho humano, a mercadoria oculta também as relações sociais entre os trabalhos individuais e concretos dos produtores de mercadorias, o que é caracterizado como fetichismo da mercadoria (MARX, 2017). Quando se considera o turismo, isso torna-se fundamental. A mercadoria do turismo, assim como toda mercadoria, não é vista tal, o que leva ao completo desconhecimento de seus mecanismos de ocultação. Nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx já apresentava as primeiras reflexões sobre esse conceito da ocultação perpetrada pela mercadoria. Naquele momento, Marx (2010) chamava a atenção para o ocultamento das relações sociais contido na mercadoria, surgindo assim o estranhamento do trabalho. Desta forma, o trabalho estranhado[1] é aquele em que o produto finalizado é estranho ao trabalhador que o produziu.


Por se apropriar dos elementos naturais, do mundo exterior sensível, para realizar trabalho, que só pode se realizar em função dessa natureza e desse mundo exterior sensível, o trabalhador deixa de se apropriar dos meios de subsistência físicos fornecidos por essa mesma natureza. Assim, ele se apropria da natureza ao consumir produtos do trabalho que estão objetivados nas mercadorias, mas, por outro lado, se priva da natureza ao só ter acesso a ela justamente transformada em mercadoria. Com isso, “quanto mais o trabalhador produz, menos tem para consumir; que quanto mais valores cria, mais sem-valor e indigno ele se torna; quanto mais bem formado o seu produto, tanto mais deformado ele fica” (MARX, 2010, p. 82). Nesse sentido, o trabalhador passa a se configurar como um servo de seus objetos e só pode ser um sujeito físico na medida em que é trabalhador.


O objeto (Gegenstand) que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, fez-se coisal (sachlich), é a objetivação (Vergegenständlichung) do trabalho. A efetivação (Verwirklichung) do trabalho é a sua objetivação. Esta efetivação do trabalho aparece ao estado nacional-econômico como desefetivação (Entwirklichung) do trabalhador, a objetivação como perda do objeto e servidão ao objeto, a apropriação como estanhamento (Entfremdung), como alienação (Entäusserung) (MARX, 2010, p. 80; grifos do autor).


Aqui, encontramos o que Marx diz sobre desefetivação e estranhamento. O produto do trabalho do trabalhador lhe aparece como algo estranho, distinto de si mesmo. O trabalhador não reconhece como seu o produto de seu trabalho. Perceba como o parágrafo final de Meliani (2020) ressoa esse conceito. Tornemos isso mais simples: uma pessoa que, desejando comer um pão de fermentação natural, junta os ingredientes necessários, produz seu próprio fermento natural, esperando dias até que fique pronto, utilize esse fermento posteriormente em sua massa de pão, sova a massa, assa o pão e, por fim, o come, tem no pão o produto de seu trabalho (não entraremos na diferenciação entre trabalho produtivo e improdutivo). Essa pessoa reconhece no pão todo o processo de produção, desde a concepção inicial até o momento final de comer o pão. O pão, para essa pessoa, não aparece como uma coisa qualquer, como igual a uma mercadoria adquirida na mercearia ou mercado, mas sim como trabalho objetivado.


Entretanto, um trabalhador que vende sua força de trabalho, até mesmo no setor de serviços, como é o caso do turismo, não reconhece em seu trabalho todo o processo de produção, não vê como produto do seu trabalho a prestação de serviço para o turista, ou seja, ele mesmo enquanto mercadoria. O serviço prestado, a mercadoria vendida, aparece como uma coisa estranha a ele. O trabalhador se desefetiva dos frutos de seu esforço. E assim é devido ao modo de produção capitalista, onde todos os trabalhadores vendem sua força de trabalho em troca de um salário. Ao fim, todo trabalho, no sistema capitalista, é trabalho estranhado. Por certo que a explicação do estranhamento não se esgota nessa explanação simples. Consideremos, entretanto, como um preâmbulo ao conceito.


Essa condição de estranhamento do trabalho e do produto do trabalho por parte de quem realiza a produção é determinante para que essa produção apareça aos trabalhadores como formas autônomas.


A imagem abaixo demonstra bem alguns aspectos do estranhamento do trabalho. Camareira em São Paulo, ela trabalha, em forma cooperada, em ao menos 10 hotéis na cidade. Além de tudo, ainda tem uma segunda ocupação, é garçonete em restaurantes. Assim, trabalhando em tantos lugares diferentes, com jornada de trabalho extensa, a trabalhadora não pode conhecer a fundo todos os detalhes do serviço prestado em todas essas empresas e muito menos criar algum tipo de entendimento de sua importância no processo de trabalho desses locais.


Calcada na existência da propriedade privada e na diferença entre capitalistas e assalariados, Marx (2010) caracteriza o estranhamento como uma espécie de véu que cobre as vistas dos trabalhadores. Além disso, a forma-dinheiro, que reduz a existência social das mercadorias a uma grandeza quantitativa e mensurável, alia-se a esse estranhamento do trabalhador em relação ao objeto de seu trabalho, afastando-o ainda mais desse objeto.


Mas o estranhamento em relação ao produto do trabalho é somente um ponto de uma cadeia de estranhamento: “o estranhamento não se mostra somente no resultado, mas também, e principalmente, no ato da produção, dentro da própria atividade produtiva” (MARX, 2010, p. 82; grifos do autor). Novamente, relembro o parágrafo final de Meliani (2020), que apresenta bem esse conceito. Isso significa que, para o produto do trabalho ser algo estranho ao trabalhador, o processo de produção também deve ser estranho. Esse fato revela que, na realidade, todo o trabalho é estranho ao trabalhador.


Marx (2010) considera que o trabalho é externo ao trabalhador pois há uma relação forçada, o trabalho como algo obrigatório e não como um desenvolvimento de energia física ou espiritual livre. O trabalhador só se sente pertencente a si mesmo quando está fora do trabalho. Expõe Marx que o estranhamento do trabalho em si “evidencia-se aqui de forma tão pura que, tão logo inexista coerção física ou outra qualquer, foge-se do trabalho como de uma peste. O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se exterioriza, é um trabalho de autossacrifício, de mortificação” (MARX, 2010, p. 83). É possível indicar aqui o subsídio para as discussões sobre o lazer na sociedade capitalista.


No turismo, verifica-se, igualmente, essa situação. Um trabalhador de agência de viagem não se vê como componente em um processo de produção mais amplo, no caso, do produto turístico, considerando-se apenas um trabalhador especializado. Em hotéis, procura-se manter a completa discrição dos funcionários, uma espécie de apagamento do componente humano dentro do componente físico do serviço de hospedagem. Esse assunto, inclusive, é tratado muito bem por outros autores deste Blog: Cañada (2020), Gabriela Camargo (2020) e Núria Calvet, Carla Conde e Marta Almela (2020). Nos transportes, motoristas ou pilotos poucas vezes entendem sua posição no processo da atividade turística. Todos esses trabalhos unidos, que fazem parte da mercadoria final, entretanto, são vistos como separados e desconectados, havendo inclusive competição entre eles.


Novamente, como ilustração da condição estranhada do trabalho, no turismo, a imagem abaixo nos é propícia. Trabalhadoras do maior aeroporto do Brasil, o aeroporto de Guarulhos, elas afirmam não poder desfrutar o tempo livre de maneira que considerem positiva. Perguntadas se aproveitam os dias de folga, respondem que não, pois apenas um dia de folga não é suficiente para descanso e lazer. Da mesma forma, trabalhadoras de um aeroporto, afirmam que nunca viajaram de avião.


O turismo dilui a importância do trabalho humano em uma cadeia de serviços prestados pelos mais diversos agentes. A mercadoria-turismo torna-se, nesse desenvolvimento, algo existente por si mesmo, sem ligação alguma com o trabalho humano envolvido em sua fabricação: as agências de viagem “vendem” destinos, nunca fornecedores de serviços turísticos; “realizam sonhos”, nunca desejos supérfluos.


Assim, finalizo esse texto sem ter passado de uma abordagem superficial da temática. Do mesmo modo que o texto de Meliani incentivou as linhas que foram aqui apresentadas, espero que os pensadores e pesquisadores em turismo aceitem o convite e continuem o debate, apresentando novas abordagens ao tema. Compreendo que o debate pode ser tomado como excessivamente teórico, entretanto, precisamos nos apropriar dessa teoria e das críticas que possam surgir através de uma abordagem como essa, afinal, como nos diz Marx (2005, p. 151), “é certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que o poder material tem que ser derrubado pelo poder material, mas a teoria converte-se em força material quando penetra nas massas”. Deixemos que nossa teoria se transforme nas armas da mudança que tanto desejamos.



 

REFERÊNCIAS

MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010.

MARX, Karl.. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2017.

MELIANI, Paulo. Subordinação ao capital e alienação do trabalho no turismo. Labor Blog, 2020. Disponível em Subordinação ao Capital e Alienação do Trabalho no Turismo (labormovens.com).

[1] Também descrito como alienação, de acordo com alguns autores e traduções dos textos de Marx em português. Ler Ranieri (2004) in: MARX, Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010.

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