Sandra Dalila Corbari
*Texto retirado e adaptado do livro “Uma viagem animal: a questão animal na teoria e na prática turística”.
Animais não-humanos são utilizados para diversos fins: tração, transporte, guiamento, proteção patrimonial e pessoal, companhia, pastoreio, alimentação, entre outros. No âmbito do lazer e do turismo eles desempenham inúmeras funções. Algumas espécies são utilizadas como atrações turísticas em ambientes naturais, de cativeiro e de semi-cativeiro. Outras são facilmente encontradas como atributos paisagísticos, como em ambientes que buscam promover a ruralidade. Em muitos destinos turísticos, certas espécies animais são utilizadas como iguarias culinárias exóticas; outras são alvo de práticas recreativas crueis, como caça e pesca.
Há um amplo leque de espécies que foram incorporadas no setor produtivo, ou seja, são trabalhadores do turismo. Alguns são “atores” em espetáculos, como em parques aquáticos ou touradas. Há aqueles que são utilizados para transporte de mercadorias, bagagens ou pessoas. E por que não falar daqueles que são objetos do turismo sexual? Essa é uma lista exemplificativa de como esses seres estão incorporados na prática turística em um continuum entre o “mais ético” e o “menos ético”.
Tais seres são objetos de dominação. O abolicionista Gary Francione (2008, p. 27, tradução nossa) destaca: “[...] os animais são usados no cinema e na televisão. Há milhares de zoológicos, circos, carnavais, pistas de corrida, exposições de golfinhos e rodeios [...] Os animais utilizados em entretenimento são muitas vezes forçados a suportar a vida inteira encarceramento e confinamento, más condições de vida, perigo físico extremo e dificuldades, e tratamento brutal. A maioria dos animais utilizados para fins de entretenimento são mortos quando não são mais úteis, ou vendidos para pesquisa ou como alvos para atirar em reservas de caça comercial”.
O fato é que o setor do turismo é antropocentrista. Essa posição ética pressupõe superioridade humana e, mais que isso, entende que os seres humanos são os únicos que têm consideração moral (Lovelock; Lovelock, 2013), portanto, devem determinar a forma e a função da natureza na sociedade (Fennell, 2006). A partir dessa concepção, os animais não-humanos existiriam para serem usados; eles não têm direitos individuais e o bem-estar deve ser fornecido apenas se atender às necessidades humanas (Francione, 2008). Mesmo em melhores condições de vida, os animais são manipulados para o prazer dos turistas e para os benefícios econômicos, ou seja, tem sido atribuído a eles valor instrumental em vez de valor intrínseco.
Há concepções éticas alternativas, como o bem-estar animal, que ainda são utilitaristas. Torres (2007) critica essa visão, comparando-a com a aceitação da escravidão desde que os escravos sejam bem tratados.
O fato é que diversas espécies animais são exploradas como meio para um fim, que é o lucro na produção capitalista contemporânea. Sua particularidade, seus interesses e sofrimento, seus desejos de serem livres e de viver como seres do mundo estão todos subjugados aos fins produtivos do capital (Torres, 2007). E o status dos animais como propriedade prepara o caminho para a exploração institucionalizada e sistemática dos animais (Alliance for Marxism and Animal Liberation, 2019).
Torres (2007) expõe os aspectos que diferem os trabalhadores humanos dos não-humanos. Enquanto os primeiros recebem remuneração, mesmo que baixa, os segundos recebem apenas os meios de subsistência, como alimentação – que são, por vezes, precários. Além disso, os humanos podem ir para suas casas ao final do expediente, enquanto os animais vivem no local de produção.
Enquanto os humanos são percebidos como força de produção, os animais são propriedade, tratados, por vezes, como parte do “maquinário” de produção ou mesmo como mercadoria. Ainda, enquanto parte do que os trabalhadores humanos produzem é tomada pelo proprietário dos bens de produção, no caso dos animais, o resultado de sua produção pertence integralmente ao proprietário, gerando lucro máximo. Estão longe de serem considerados sujeitos-de-uma-vida (Regan, 2004), menos ainda sujeitos de direito.
Apesar de suas diferenças, a classe trabalhadora humana e os outros trbaalhadores têm uma história comum: são seres sofredores, humilhados, oprimidos e abandonados; sendo, os primeiros sujeitos, os últimos objetos de liberação (Alliance for Marxism and Animal Liberation, 2019). No entanto, os trabalhadores humanos podem se organizar para se defender, planejar greves e manifestações; podem analisar as condições sociais em que estão sendo explorados e dominados, ao contrário dos não-humanos. “Por esta razão, a classe trabalhadora pode ser o sujeito de sua própria libertação. Os animais, ao contrário, só podem ser objetos de libertação” (Alliance for Marxism and Animal Liberation, 2019, p. 173, tradução nossa).
O especismo estrutural (Oliveira, 2021) expõe sua relação com toda estrutura de dominação; por isso, a questão animal deve ser associada a uma compreensão ampla de justiça social, incluindo a luta de classes e a luta pelo fim da violência estrutural, uma vez que as várias formas de opressão são integradas de tal forma que a exploração de um grupo frequentemente aumenta e compõe o mau tratamento de outro (Nibert, 2002). “Enquanto humanos viverem num sistema de opressão como o nosso, não há possibilidade de construir qualquer movimento por libertação seja lá do que for. Enquanto essa opressão se estender aos animais e não começarmos a pesar [sic] neles como atores políticos relevantes, nada funciona” (Coelho, 2023a, não p.).
Considerando que os animais são entendidos como ferramentas para a produção de capital, a única maneira de abolir sua exploração é desafiar seu status como propriedades e mercadorias (Torres, 2007). As reivindicações de libertação animal devem considerar as condições historicamente específicas em que ocorrem a exploração de animais e quais mudanças sociais são necessárias para acabar com ela.
Por outro lado, a crítica marxista sobre a sociedade permanece incompleta se não considerar o fato de que, para obter lucros, as classes dominantes não apenas exploraram as oprimidas na história da luta de classes, mas também – e sempre – os animais e a natureza (Alliance for Marxism and Animal Liberation, 2019).
Estudiosos como Torres (2007) chamam a atenção para o fato que mesmo a esquerda progressista carece de uma posição que realmente desafie todos os tipos de dominação. Esse autor também é crítico a argumentos da própria esquerda, de que pensar os direitos dos animais é desnecessária, enquanto tantos seres humanos sofrem no mundo todo. Porém, como defende o filósofo Coelho (2023b, não p.), “ninguém deveria anteceder ou suceder ninguém na nossa luta. Essa lógica da sucessão reproduz uma forma de pensamento hierárquico muito pobre e que reproduz o próprio modelo que violenta os animais os colocando em posições de inferioridade”.
A Aliança pelo Marxismo e Libertação Animal (2019, p. 156, tradução nossa) vai ao encontro do que apregoam Torres e Coelho, e afirma que “nem a esquerda marxista defendeu a libertação dos animais até agora, nem os direitos dos animais e o movimento de libertação animal assumiram a construção de uma sociedade socialista”, embora tenham um inimigo em comum: a burguesia.
Pensar a libertação animal também no âmbito do lazer e do turismo é urgente, dada suas particularidades anteriormente mencionadas. Após essa libertação, será possível falar de um turismo, de fato, justo, ético e comprometido.
REFERÊNCIAS
ALLIANCE FOR MARXISM AND ANIMAL LIBERTATION. XVIII tesis sobre marxismo y liberación animal. Revista Latinoamericana de Estudios Criticos Animales, v. 6, n. 2, p. 156-177, dic. 2019.
COELHO, C. C. Enquanto os humanos viverem... 10 maio 2023a. Twitter: @VegetalVermelho. Disponível em https://twitter.com/VegetalVermelho?ref_src=twsrc%5Egoogle%7Ctwcamp%5Eserp%7Ctwgr%5Eauthor.
COELHO, C. C. Ninguém deveria anteceder ou suceder... 10 maio 2023b. Twitter: @VegetalVermelho. Disponível em https://twitter.com/VegetalVermelho?ref_src=twsrc%5Egoogle%7Ctwcamp%5Eserp%7Ctwgr%5Eauthor
FENNELL, D. Tourism Ethics. Clevedon/Buffalo/Toronto: Library of Congress Cataloging in Publication Data, 2006.
FRANCIONE, G. Animals as Persons Essays on the Abolition of Animal Exploitation. Columbia University Press, 2008.
LOVELOCK, B.; LOVELOCK, K. The Ethics of Tourism: Critical and applied perspectives. New York: Routledge, 2013.
NIBERT, D. A. Animal right/human right. Rowman & Littlefield Publishers, 2002.
OLIVEIRA, F. A. G. Especismo Estrutural: Os animais não humanos como um grupo oprimido. In: PARENTE, A.; DANNER, F.; SILVA, M. A. (Org.). Animalidades: fundamentos, aplicações e desafios contemporâneos. Porto Alegre: Editora Fi, 2021, p. 48-71.
REGAN, T. The Case for Animal Rights. University of California Press, 2004.
TORRES, B. Making a Killing: The Political Economy of Animal Rights. Stirling (UK): AK Press, 2007.
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