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Narrativas sobre o trabalho no cinema contemporâneo: um olhar sobre o filme La Camarista

Michele Pereira Rodrigues | Doutoranda em Comunicação pela PUC-Rio


A discussão sobre o trabalho e as contradições da classe trabalhadora é constante na história do cinema de ficção em todo o decorrer do século XX. Entre as produções brasileiras, por exemplo, o assunto pode ser notado desde os anos 20, num movimento que atinge seu ponto alto no início da década de 80, quando se destacam grandes obras como O homem que virou suco (1980) e Eles não usam black-tie (1981). Em ambas produções, um fator em comum chama a atenção: o foco narrativo se concentra nas lutas coletivas por direitos que se desdobram na grande maioria das vezes em espaços públicos, reforçando o caráter comunitário e de classe em que até então a questão do trabalho estava pautada.


Após esse período, em consonância com o que ocorria no mundo, em que a importância e a centralidade do trabalho passou a ser questionada com o crescimento das políticas neoliberais, as narrativas sobre o trabalho e os trabalhadores foram perdendo o protagonismo no cinema.


Segundo Vera Figueiredo, se


A primeira câmera da história do cinema focalizou uma fábrica, mas depois de cem anos, como observou Harun Farocki (2015, p.195), pode-se dizer que a fábrica atualmente tem atraído pouco o cinema. O trabalho e o trabalhador acabaram ocupando um lugar secundário. A maioria dos filmes passou a narrar aquela parte da vida que está depois do trabalho (FIGUEIREDO, 2020, p. 26).

Essa virada na abordagem reflete um cenário de dissolução das conquistas dos trabalhadores no decorrer do século XX que tem como consequência um desencantamento do trabalhador com o trabalho e a perda da esperança de que esse seria o meio que lhe proporcionaria a emancipação almejada. Soma-se a isso um movimento de desmobilização das classes trabalhadoras, que acompanha o individualismo característico da sociedade contemporânea.


Entretanto, recentemente, talvez como resistência à precarização por qual os trabalhadores têm passado, a discussão sobre o trabalho volta a ganhar corpo dentre as produções cinematográficas.


No século XXI, ainda que com novas abordagens, os conflitos advindos da relação capital-trabalho reaparecem na ficção cinematográfica. Entretanto, a consciência da opressão e a resistência política são mais experimentadas como construções subjetivas do que como projetos coletivos de luta (FIGUEIREDO; MIRANDA; SICILIANO, 2019, p. 1).

Figueiredo, Miranda e Siciliano notam, nesta pesquisa, de forma bastante perspicaz, uma retomada recente dessa discussão no cinema, embora o viés agora seja individualizado e o palco dos conflitos narrativos não seja mais a luta coletiva e sim a esfera íntima. A questão parece fugir do campo social para o espaço psicológico. Isso reflete o pensamento de Beatriz Sarlo (2007), para quem as estruturas, no mundo contemporâneo, cederam lugar aos indivíduos e às questões particulares. Para citar alguns exemplos da representação desse fenômeno, podemos mencionar, Arábia, filme brasileiro de 2017, e La Camarista, produção mexicana lançada em 2018. É sobre esse segundo exemplo que gostaríamos de tecer alguns comentários.

La Camarista apresenta a história de Evelia, de 24 anos, uma camareira de hotel luxuoso da Cidade do México, capital do país.

Imagem de divulgação do filme


Discreta, emudecida, invisível. Essas são características que expressam o comportamento de Eve no trabalho e revelam a posição de trabalhadores que vivem nos bastidores do hotel e da vida, tendo seu tempo e seu espaço expropriados em função das longas e extenuantes jornadas de trabalho que não lhes permitem o desfrute. Toda a narrativa se passa no hotel. Toda a vida de Eve parece ser o hotel, exemplo que nos permite questionar o argumento da perda de centralidade do trabalho, que comentamos anteriormente.


Embora sua identidade esteja encoberta por trás de seu comportamento e do uniforme cinza e os cabelos presos que a deixa idêntica aos demais, a humanidade da personagem é expressa nas poucas cenas onde ela demonstra seus desejos: ganhar um vestido vermelho esquecido por uma hóspede, caso ela não apareça num determinado prazo para buscá-lo e passar a trabalhar no 42º andar do hotel, onde se hospedam pessoas importantes com altos cargos em empresas e no governo e onde trabalham os funcionários com maior o salário e prestígio dentro da empresa.

Também se expressa nos poucos contatos que ela tem com o mundo exterior, que ocorrem através do telefone, quando fala sobre o filho e promete visitá-lo e também através de objetos dos hóspedes (livros, fotografias) que ela percebe enquanto faz a limpeza e a organização habitual dos quartos e que parecem lhe causar encantamento, retirando-a por segundos de sua realidade de trabalho manual e reprodutivo e levando-a para o campo da arte e da sensibilidade. Por vezes a câmera flagra o olhar de Eve através das janelas do edifício. O mundo exterior, assim, lhe parece distante e os vidros representam justamente a fronteira quase que intransponível que a prende do lado de cá.


Cena do filme


Consideradas as muitas sutis violências e coerções a que Eve está exposta, a narrativa se encaminha para o seu desgosto com a promessa da recompensa que provém do trabalho árduo e que não se cumpre, já que sempre surgem imprevistos e ela não pode sair do hotel para ver seu filho.


Por conta da nossa tradição narrativa aristotélica, é comum que nós, espectadores, esperemos do filme um desfecho onde Eve tome consciência de sua exploração e não a aceite mais. Mas contra quem Eve deveria se revoltar? Seus superiores hierárquicos não aparecem na narrativa, o dono do hotel também não aparece. Se antes, portanto, nos filmes cujo antagonista ao trabalhador era um personagem evidente, como o presidente da fábrica de Tempos Modernos, hoje sua imagem se tornou turva. Quem, então, oprime Eve?


Nas palavras de Bauman sobre a contemporaneidade “O controle tornou-se oculto: nunca mais será ocupado por um líder conhecido ou por uma ideologia clara” (2001, p. 168). Se o símbolo de poder moderno era o panóptico, uma torre de vigilância fixa, visível, hoje esse poder se tornou difuso e extraterritorial e por isso o neoliberalismo não resulta na revolta. Por esse e outros motivos, para Han, ele, o neoliberalismo, “não transforma os explorados em revolucionários, mas sim em depressivos” (HAN, 2018, p. 16). E é exatamente isso que vemos na personalidade de Eve.


A última cena do filme, que mostra a personagem principal saindo do hotel, solitária, único momento inclusive em que a câmera não a acompanha, nos permite fazer uma alusão ao filme dos irmãos Lumiére em 1985, que trouxemos em uma citação antes. Lá a saída dos operários da fábrica em conjunto, ao mesmo tempo, nos permite pensar em experiências de trabalho compartilhadas e, em consequência disso, em uma potencial força que emana do coletivo, exatamente o oposto do que acontece com Eve, solitária ao sair do local onde trabalha.


Sendo assim, entendemos La camarista como uma narrativa que expressa a hostilidade que se esconde por detrás da aparente hospitalidade hoteleira e que se estende também por toda a cadeia de produção do turismo, se a pensarmos pelo ponto de vista dos trabalhadores do setor.


 

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2001.

FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. A ficção equilibrista: narrativa, cotidiano e política. Belo Horizonte: Relicário, 2020.

FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de; SICILIANO, Tatiana Oliveira; MIRANDA, Eduardo. O tempo subtraído: cotidiano e trabalho no cinema brasileiro do século XXI. XXVIII Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre - RS, 2019. Disponível em: http://www.compos.org.br/biblioteca/trabalhos_arquivo_9M453JEJ1MF7MEX1KTOQ_28_7294_11_02_2019_17_47_57.pdf. Acesso em: 22/10/2019.

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica. Belo Horizonte: Âyiné, 2018.

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.

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