Iraneide Pereira | IPFE
Crédito: Fanpage Escravos da Hotelaria
A relação com o tempo implica experiências, valor, sentidos e uso dos tempos sociais. Assim, o entendimento dessa categoria necessita da compreensão dos aspectos históricos e sociais que a constitui, considerando os aspectos relacionais entre os tempos sociais, os sujeitos e suas experiências. Nesta direção, buscou-se refletir acerca da construção de sentidos sobre a relação entre tempo de trabalho e tempo livre para os trabalhadores dos serviços de hospitalidade, especificamente os dos serviços de hospedagem.
Na busca por esta compreensão, refletir sobre as experiências dos trabalhadores que estão envolvidos em seu cotidiano de trabalho com as experiências de lazer de outras pessoas - ou seja, os trabalhadores que têm em sua vivência de labor uma fronteira tênue entre trabalho e lazer, como os trabalhadores dos serviços de hospedagem -, pode trazer luzes sobre os aspectos subjetivos desta relação.
Em seu cotidiano, esses trabalhadores no seu tempo de trabalho atuam em suas atividades enquanto o cliente está em seu tempo livre, fazendo com que a construção de sentidos sobre a relação trabalho e lazer pareça estar estreitamente influenciada por esta convivência com o tempo livre do outro.
Assim, considerando este contexto, buscou-se compreender quais os sentidos construídos sobre o trabalho? Quais os sentidos construídos sobre o tempo livre? Como os sentidos construídos sobre a relação trabalho e lazer se relacionam para estes trabalhadores? Como dialogicamente os sentidos são construídos sobre esta relação?
Tais questões nortearam esta reflexão e fundamentaram-se na centralidade da linguagem e sua materialidade para compreensão da construção de sentidos segundo a perspectiva Bakhtiniana e nos processos interacionais e dialógicos que permeiam a construção de sentido sobre tal relação. Este aspecto dialógico indica que é por meio das relações com os outros que nos constituímos e construímos sentidos no decorrer dos diálogos, uma vez que, segundo Bakhtin, toda ação do homem é voltada para o outro e por meio da linguagem há a produção de sentidos (BAKHTIN, 2006). Por meio da análise do discurso, acessa-se o sentido deste. Ressaltando que o sentido do discurso está sempre em aberto, passível de interpretação por parte do receptor.
Considerando que a construção de sentidos parte das relações sociais estabelecidas, das vivências e do contexto histórico e social que envolve tal construção, realizou-se um estudo da comunidade de fala, a Fanpage do Facebook Escravos da Hotelaria.
A comunidade foi criada em dezembro de 2011 e vem atraindo profissionais da área para as discussões sobre os mais variados temas que são apresentados pela inserção de posts, com a utilização de imagens, vídeos, frases, links compartilhados de revistas e jornais, tirinhas de histórias em quadrinhos, ou seja, os mais variados recursos para promoverem interações sobre suas experiências de trabalho nos serviços de hospedagem.
A fanpage é administrada por três mediadores que se autodenominam Devacilleny (reservete – indicando ser do setor de reservas/recepção), Lucibal (mensageiro) e Adalgamir (maitre). Ela tem como slogan “Aqui o escravo tem voz!” e definiu como objetivo:
trocar experiências profissionais, analisarmos cases do dia a dia ou de sucesso, informações importantes, conhecermos nossos direitos e deveres, sermos reconhecidos e respeitados como classe profissional e acima de tudo nos divertir! (ESCRAVOS, 2016).
Tomei contato com a referida comunidade em 22 de janeiro de 2014, quando possuía, à época, 15.416 curtidas. Destaca-se que, em 09 de setembro de 2020, ela apresentou 84.821 membros (considerando o número de pessoas seguindo a comunidade), o que dá uma ideia da importância da página como espaço de interação e referência de respeito por parte desses trabalhadores. Trata-se de uma comunidade bastante ativa e que vem atraindo profissionais da área de hospedagem e outras áreas do turismo para, por meio de situações do cotidiano de trabalho, interagir e dialogar sobre temas inerentes a sua vivência de trabalho na hotelaria.
Os temas analisados na pesquisa realizada em 2016 no Programa de Pós-Graduação em Administração - Doutorado - PROPAD-UFPE foram:
características do trabalho,
condições de trabalho,
relações sociais no trabalho,
relação trabalho e tempo livre,
E buscou-se evidenciar por meio do dialogismo os sentidos construídos sobre a relação estudada, por meio das interações da comunidade estudada.
Características de trabalho
As análises indicam sentidos principalmente sobre o tempo de trabalho. Estas, além de corroborar as características do trabalho na modernidade avançada, ligadas à flexibilização e precarização do trabalho, também expressam os sentidos sobre elas. Para esses trabalhadores, tal flexibilização e precarização se aproximam do conceito de liofilização organizacional, “processo no qual, substâncias vivas são eliminadas”, tratado por Antunes (2010, p. 21). A construção de sentido ligando o trabalho à liofilização se dá por se considerarem vampiros ao verem o local de trabalho sugar sua vitalidade.
Aparentemente, tais características levam esses trabalhadores a vivenciarem este tempo com uma vida subjugada ao mercado e ao local de trabalho, também os expondo à relação prazer-sofrimento no trabalho, pois, dialeticamente, mesmo sendo este local fonte de adoecimento físico e sofrimento psíquico, as interações apontam também para o prazer em trabalhar no setor. Os trabalhadores utilizam como a principal estratégia defensiva a ironia, evidenciada pelo caráter anedótico não só da proposta da comunidade de fala estudada, como também pelas enunciações e interações nela apresentadas.
Condições de trabalho
Já as condições de trabalho revelam sentidos construídos ligados ao desrespeito como trabalhadores e seres humanos. Tais aspectos são percebidos pelas condições precárias no ambiente de trabalho, fazendo-os se identificarem como animais. Esses trabalhadores percebem também que são desrespeitados em seus saberes técnicos, uma vez que estes parecem não serem levados em conta no cotidiano de trabalho.
Relações sociais no trabalho
As relações sociais estabelecidas no trabalho constroem sentidos diversos. Com a gerência, este vínculo está permeado pela constante preocupação com a vigilância e controle do trabalho, a falta de preparação para a função gerencial e o tratamento diferenciado de trabalhadores no cotidiano destes meios de hospedagem. Esta aparente substituição das relações profissionais por práticas protecionistas no cotidiano de trabalho influenciam a relação com os pares, uma vez que “a base [da relação gerente–trabalhador] é a intimidade”, acarretando uma diferenciação de tratamento que pode potencializar conflitos entre os pares. Esta relação apresenta-se aparentemente de forma conflituosa e influenciada pelas relações de afeto com a gerência, pois as relações afetivas, de poder e de envolvimento com o grupo acabam por gerar "benefícios" diferenciados, pois aparentemente existe um tratamento para os "preferidos", e outro para o “pobre colaborador mortal”, que representa a maioria dos trabalhadores do setor.
Ressalta-se que os posts publicados declaram que a jornada de trabalho, principalmente quando há alguma alteração, é um elemento gerador de conflitos entre os pares, indicando que este é um tema melindroso nesta relação. Infere-se então que os sentidos construídos nesta relação estão ligados a uma relação assimétrica entre “preferidos” e “mortais”, além de ser conflituosa quando este tema se apresenta.
Já com os hóspedes, o outro a quem os trabalhadores buscam servir, os sentidos construídos estão baseados na necessidade de humanização no tratamento direcionado a eles, numa relação dialética no contato estabelecido entre o trabalhador e o hóspede que produz prazer pelo trabalho realizado, mas produz sofrimento, pela falta de reconhecimento por parte dos hóspedes. Como estratégias de defensivas, surgem a figura da “Musa da página” e o uso da “Cara de paisagem”.
Esses mecanismos de resistências aparentemente constituem-se como personas/personagens utilizados não só como um chiste, mas como uma máscara necessária para adaptação do trabalhador às demandas que surgem na relação com o hóspede. Tais mecanismos estão pautados no caráter irônico, anedótico e de brincadeiras coletivas que amenizam as situações vivenciadas pelos trabalhadores e constroem sentidos sobre esta experiência de trabalho, amenizando o sofrimento pela falta de reconhecimento pelo/no trabalho que realizam.
A relação com o sindicato constrói sentidos pautados na sensação de falta de representatividade do trabalhador e a percepção de que seu sindicato representa, na verdade, o empregador, e esses aspectos reverberam no tom de descrédito na mobilização tanto dos trabalhadores do setor como na ação desse ator de representação devido à percepção da fragmentação sindical.
Tempo de trabalho X tempo livre
Apresenta-se pela intensificação do tempo de trabalho e pela utilização do tempo livre basicamente para dormir e recompor as energias para o retorno ao trabalho. Isso demonstra que essa relação está centrada no tempo de trabalho e que é necessária a busca pelo equilíbrio entre estes tempos sociais.
Considerando o tempo de trabalho, percebe-se que este suga a vitalidade dos trabalhadores, uma vez que ele promove adoecimento físico e psíquico, gerando um sentimento de busca pela liberdade. O tempo de trabalho expresso no tempo da jornada indica a intensificação e o controle do tempo como mecanismo de medida da produção.
No setor, a jornada exposta pela escala de trabalho no formato pelo critério 6 x 1 indica a intensificação e precarização do trabalho nesse setor, ou seja, a jornada de seis semanas de trabalho para um domingo de folga na sétima semana. Acrescenta-se que as horas extras são outro aspecto de intensificação da jornada de trabalho no setor. Nela, percebem-se a relação de sofrimento e a de busca por se desvencilhar desta realidade, quando os trabalhadores buscam sua “carta de alforria”.
Já o tempo livre representado pelas folgas, férias e pelos feriados constrói sentidos ligados à sua negação e inacessibilidade a este direito. A folga representará uma expectativa de tempo livre para o lazer, a diversão e o entretenimento, mas na realidade não se consegue usufruir dele, uma vez que seu tempo livre é destinado somente para a reposição das condições físicas e psíquicas para retornar ao trabalho. Acrescento ainda que o controle sobre o tempo livre está no poder discricionário da chefia e que este tempo não é respeitado pela gerência, pois tanto os dias de folga, folga em feriados e o período de férias podem ser modificados pela gerência conforme demanda do trabalho, demonstrando que é o tempo de trabalho que é central nesta relação.
Para usufruir do seu tempo livre, o trabalhador resiste ao dizer que “estou em todas”, mas com um sacrifício físico e muitas vezes insalubre, pois, para ter um tempo de lazer, o trabalhador sacrifica o tempo de descanso, pois, aparentemente, não é possível equilibrar tempo de trabalho, tempo livre e tempo de descanso, restando apenas a sensação de que esses trabalhadores não têm “nem vida alguma”.
Resulta desse contexto que a relação entre tempo de trabalho e tempo livre, considerando a centralidade do trabalho, interfere na vivência dos demais tempos sociais, fazendo esses trabalhadores buscarem o direito ao tempo de viver a vida. Busca pela “vida autêntica”, “uma vida cheia de sentido fora do trabalho supõe uma vida dotada de sentido dentro do trabalho” (ANTUNES, 2003, p.175).
O estudo ora exposto busca trazer um olhar sobre a relação tempo de trabalho e tempo livre, acreditando que somente por meio do equilíbrio entre essa relação é que se poderá humanizar o trabalho e proporcionar aos trabalhadores a vivência plena de todos os tempos sociais de forma mais autônoma, criativa e emancipadora dos indivíduos. Tal pensamento endossa a reflexão feita por Antunes (2003b) na qual, apenas por meio do equilíbrio entre os tempos sociais e da busca pela vivência do tempo livre de forma autônoma e criativa, haverá um tempo de trabalho mais humano e pleno de sentido.
Referências:
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, Ed. da Universidade Estadual de Campinas, 2003.
___. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Cortez; Campinas SP: Ed. da Universidade Estadual de Campinas, 2003b.
___. Produção liofilizada e a precarização estrutural do trabalho. In: LOURENÇO, Edvânia et al. O avesso do trabalho II: trabalho, precarização e saúde do trabalhador. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006.
ESCRAVOS da Hotelaria. Fanpage do Facebook. Disponível em: <www.facebook.com/escravosdahotelaria>.
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