top of page

Bora analisar uma notícia? Sobre a cobrança à parte de serviços outrora básicos na hotelaria

Atualizado: 10 de dez. de 2021

Renan Augusto Moraes Conceição | Professor na UNESPAR e Doutorando em Turismo na USP


Quando estamos rolando nossos feeds de redes sociais ou acessando portais de notícias, é comum nos depararmos com muitas que são verdadeiros acintes, disfarçadas de modernização, impregnadas de discurso neoliberal. Grassa, nessas notícias, uma cegueira crítica que serve somente para martelar na cabeça dos leitores uma série de ideias que, em sua essência, são danosas, pois se anunciam como melhorias para os clientes e consumidores. Vejamos a notícia a seguir: “Bora arrumar a cama! Rede global de hotéis corta serviço diário de limpeza de quarto”, que um perfil sobre turismo e passagens aéreas publicou recentemente em uma rede social. Caro leitor do blog Labor Movens, nem queira passear pelos comentários da postagem.



O texto informa que uma rede internacional de hotéis decidiu cortar o serviço de limpeza diário das Unidades Habitacionais em seus hotéis na Europa, África, Oriente Médio e EUA. O Brasil, por enquanto, fica de fora. A partir de agora, o hóspede que quiser que sua habitação seja limpa e arrumada diariamente, deve contactar a recepção e pedir o serviço. Se o hóspede não informar sua preferência, a UH somente será limpa e organizada após cinco dias de hospedagem, ou após o check-out. A rede justifica a medida afirmando que está alinhada às expectativas e desejos de seus clientes, que podem, assim, desfrutar de uma estada sem nenhuma “interferência” por parte da equipe do hotel. A imagem apresenta um casal se espreguiçando tranquilamente, certamente após uma maravilhosa noite de sono e descanso em um hotel de alto padrão, seguros de que uma camareira não irá lhes surpreender. Além disso, como a chamada da notícia na imagem dá a entender, o hóspede poderá arrumar ele mesmo a UH, poupando o trabalho de uma outra pessoa e deixando tudo como ele bem entender, afinal, “faça de conta que você está em casa”. Parece uma coisa muito boa, não? Afinal, a medida ainda diminuiria a carga de trabalho da equipe de limpeza.


Antes de apontar os problemas que uma medida como essa pode gerar, devemos olhar a situação na perspectiva do hóspede. De fato, a medida se apresenta como uma possibilidade do próprio cliente do hotel personalizar os serviços que utiliza. No entanto, no Brasil, essa situação deveria observar uma série de regras estabelecidas pelo Código de Defesa do Consumidor. O CDC veta, por exemplo, exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva. Isso ocorreria no caso de a limpeza passasse a figurar como uma taxa de serviço (o que pode ocorrer, como abordarei mais adiante). É esse o entendimento para aqueles hotéis que cobram Room Tax ou Taxa de Serviço. Além disso, os serviços todos envolvidos em uma hospedagem devem ser cobrados através da diária. A Lei Federal 11.771/2008 considera meios de hospedagem os empreendimentos ou estabelecimentos, independentemente de sua forma de constituição, destinados a prestar serviços de alojamento temporário, ofertados em unidades de frequência individual e de uso exclusivo do hóspede, bem como outros serviços necessários aos usuários, denominados de serviços de hospedagem, mediante adoção de instrumento contratual, tácito ou expresso, e cobrança de diária. Ou seja, já é possível perceber que, embora não proibido, um serviço básico que passasse a ser cobrado poderia ser tido como prática abusiva e lesiva ao consumidor. O assunto é longo e merecedor de um outro texto. Retornemos à leitura crítica da notícia.


Há muita coisa por trás dela que extrapola a perspectiva do consumidor, como pretendo apontar.


Em primeiro lugar, essa decisão por parte da rede de hotéis esconde a precarização do trabalho das camareiras e arrumadeiras de hotéis. Mas, se a limpeza será sob demanda ou apenas após cinco dias de hospedagem, o trabalho não irá, teoricamente, diminuir? Virtualmente, sim. Concretamente, não. A hotelaria, assim como qualquer outro ramo de negócios, busca lucros, resultados positivos e, de alguns anos pra cá, o corte alucinado de custos, dentro de uma lógica neoliberal de austeridade. Corte de custos, em hotelaria, se traduz em insumos, materiais e equipamentos de menor qualidade, corte de serviços e, em última instância, diminuição de quadro de funcionários. O setor de governança, da qual as camareiras e arrumadeiras fazem parte, já sofre há muito com a alta carga de trabalho, pressão por produtividade, condições precárias e equipes reduzidas, como nos contam Geovana Magalhães (2006), Euda Rocha (2010, 2013) e Ernest Cañada (2018). Ao cortar o serviço diário de limpeza, o que a rede de hotéis está sinalizando é a dispensa de funcionárias de limpeza e arrumação. Ou seja, demissões em larga escala. Por quê? Uma vez que o serviço deixa de ser considerado essencial, a equipe de presta esse serviço também deixa de ser essencial. Pra que manter uma equipe extensa se o serviço é opcional? Os hotéis poderão, assim, manter um número ainda mais reduzido de camareiras diretamente contratadas, pois a frequência de limpeza torna-se menor, em tese. Mas a realidade é que isso precariza ainda mais o trabalho da equipe que restar contratada, pois agora serão mais UH’s para limpar em menos pessoas para realizar essa limpeza, ou seja, mais pressão nas camareiras que restaram.


Além disso, abre portas para a terceirização de um serviço que é essencial nos hotéis. Se a demanda por limpeza diária for muito grande, o hotel simplesmente contrata camareiras e arrumadeiras terceirizadas, que prestam serviço em diárias. Sabemos muito bem a precariedade desse tipo de contrato de trabalho. Quando essa decisão afetar os hotéis dessa rede aqui no Brasil, as equipes que ainda permanecerem nos hotéis podem, também, acabar sendo contratadas na modalidade de trabalho intermitente, uma das possibilidades oficializadas com a Deforma Trabalhista de 2017. Como ponto de fuga para os hotéis, restará culpar os próprios hóspedes pela ultra precarização de trabalho e exploração insana de funcionárias, já que quem solicitará o serviço com frequência maior será o hóspede.


Em segundo lugar, essa decisão da rede de hotéis também sinaliza a futura cobrança do serviço básico de limpeza e arrumação. Atribuindo a uma dita flexibilização do serviço ou mesmo a uma possibilidade de individualização do serviço para cada hóspede, o hotel poderá cobrar uma “taxa de limpeza”. Começa com um valor que o hóspede considere “justo”. Logo, esse corte intencional de serviços e posterior cobrança se espalha para outros setores e outros serviços até então básicos que um hotel fornece. Com o café da manhã já funciona assim há tempos. Mas, isso tudo não está incluso no valor da diária? Com certeza está, faz parte dos custos fixos do negócio, já que o custo com funcionários é despesa fixa de uma empresa. Mas apenas nos lembramos aqui da famosa discussão do “se cobrar a bagagem o preço do bilhete aéreo cai”. Sempre existirá uma justificativa qualquer para que o preço não caia. Chegará o momento em que, divulgado como o hotel do futuro, onde o hóspede escolhe e determina os serviços que irá utilizar, absolutamente tudo dentro de um hotel será cobrado para além da diária. Isso nos leva ao próximo ponto.


Em terceiro lugar, isso tudo aponta para a financeirização do serviço hoteleiro, ou seja, para a possibilidade de superacumulação capitalista. Hoje em dia, medimos a eficiência de um hotel em gerar receita através do RevPAR, o Revenue Per Available Room, que é uma métrica de desempenho calculada dividindo a receita total de UH’s de um hotel pela contagem de UH’s e o número de dias no período que está sendo medido. Não cabe aqui entrar em detalhes sobre o cálculo em si. Com os serviços todos sendo pagos à parte, o hotel poderá criar uma nova métrica, a fim de oferecer dados atraentes de crescimento de receita, lançando-se na bolsa de valores e se integrando ao mundo especulativo do capital financeiro. O serviço de hospedagem em si se transformará, assim, em mero detalhe, pois a principal função do negócio será oferecer oportunidades rentáveis para os acionistas. Não importará mais se a hospedagem tem qualidade, se os funcionários são ou não explorados e precarizados e se há alguma preocupação com a gestão de pessoas. Veja a Amazon. É público e notório a ultra exploração dos trabalhadores, mas a empresa cresce a cada dia e atrai ainda mais investidores.


Cada uma dessas taxas cobradas por serviços antes básicos em um hotel, uma série de produtos financeiros podem ser criados. Títulos de seguro lastreados pelo índice de rentabilidade de cada serviço cobrado, por exemplo. Não precisamos ir muito longe na história para saber como essas coisas ocorrem e levam a um colapso monumental. A crise financeira de 2008-2009 é um exemplo perfeito dessa situação. Produtos e subprodutos financeiros são criados a partir de coisas aparentemente sem a mínima importância ou risco. Eles dão nascimento a uma série de outros subprodutos financeiros, que se empilham e formam uma massa podre de ativos. “Mas quanto catastrofismo!”, alguém pode dizer. De fato, no capitalismo, que marcha cada dia rumo a um abismo inevitável, uma simples notícia de corte de serviços diários de limpeza pode gerar um efeito em cascata imprevisível. E quem sofrerá as consequências de tudo isso é, em primeiro lugar, os trabalhadores do setor hoteleiro e, em segundo lugar, o hóspede.


Percebe-se um frenesi e uma empolgação quase infantil tanto de turistas quanto de pessoas ligadas ao setor do turismo de alguma forma com notícias como essa. Qualquer coisa publicizada como moderna, flexível, on demand e coisas assim conquista legiões de fãs. Mas deveríamos todos estarmos muito preocupados com decisões como a dessa rede de hotéis. Quando a pandemia de Covid-19 tomou o mundo, no início de 2020, era comum lermos e escutarmos coisas como “depois da pandemia, seremos melhores” e variantes como “o turismo não poderá ser o mesmo de antes”. A realidade que parece estar se impondo, agora, no entanto, aponta para a mesmíssima estrada de antes. E aí, bora arrumar a cama?


Referências


CAÑADA, Ernest. Reforma trabalhista e a terceirização na Espanha: a precarização do trabalho das camareiras. Revista do Centro de Pesquisa e Formação SESC, edição especial Ética no Turismo, jun. 2018, p. 55-70.

MAGALHÃES, Geovana Fátima de Oliveira. O sorriso que o relógio transforma em dor: custo humano da atividade, estratégias de mediação e qualidade de vida no trabalho de camareiras de hotel. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade de Brasília, Instituto de Psicologia, 2006.

ROCHA, Euda Kaliani Gomes Teixeira. Impacto da precarização do trabalho na saúde de camareiras: um estudo de caso. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. Sociologia, 2010.

__________. Camareira não pode ter dor nas costas, mas a gente tem. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil II. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 269-286.


629 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page