Isabela Ayra Paiva & Ana Carolina Padua Machado
O programa de intercâmbio cultural Au Pair ganhou força na última década, sobretudo por meio de divulgações na internet através de posts em redes sociais e por vídeos promocionais de agências de turismo. No âmbito da pesquisa apresentada neste texto, demonstraremos como alguns participantes do programa de intercâmbio Au Pair relatam sua rotina durante a experiência, incluindo regras do programa, tarefas e, em alguns casos, situações (positivas e negativas) com a família anfitriã (host-family).
Fonte: Isabela Ayra Paiva.
Mas afinal, o que é o programa de intercâmbio Au Pair? Trata-se de um programa de intercâmbio cultural criado na década de 1980 em países como Estados Unidos, Alemanha, Holanda e França que permite que jovens trabalhem no cuidado das crianças na casa de uma família anfitriã e, em troca, recebam alojamento, alimentação e um valor fixo mensal. O programa norte-americano foi criado sob a justificativa de oportunidade para trabalhar e estudar nos Estados Unidos, utilizando-se do termo “troca cultural” para definir a experiência. E por que este programa de intercâmbio ficou tão popular nos últimos anos? Principalmente porque é considerado como uma alternativa de intercâmbio de baixo custo para jovens que buscam uma oportunidade de vivência em outro país que, no âmbito do programa, devem possuir entre 18 e 26 anos e têm direito a um salário semanal de US $195,75 (STB).
É nesse cenário que foi realizada a pesquisa acadêmica em fevereiro de 2019[1] com au pairs brasileiros que realizaram o intercâmbio nos Estados Unidos. O objetivo do estudo foi expor a visão destes participantes sobre o programa e quais foram as suas maiores dificuldades enfrentadas. A pesquisa foi executada a partir da aplicação de um questionário online, divulgado em grupos de au pairs no Facebook e WhatsApp que totalizou 70 respostas válidas, oportunizando que relatassem suas experiências pessoais, inseguranças e opiniões sobre possíveis melhorias que poderiam ser aplicadas no programa de intercâmbio.
As informações coletadas referentes aos perfis das respondentes foram relacionadas a: estado de origem, idade, agência brasileira contratada para dar andamento ao programa de intercâmbio Au Pair, número e idade das crianças assistidas durante o intercâmbio, respeito às regras do programa, inseguranças e relatos diversos (através de questão aberta).
Os resultados mostraram uma realidade diferente do que é “comercializado” por agências de turismo e pelas regras estipuladas pelo governo norte-americano, tal como: 23% dos respondentes afirmaram que trabalharam mais de 45 horas semanais (a regra é de até 45 horas semanais de trabalho) e 43% afirmaram que não recebem nada em troca pelas horas adicionais. Nos depoimentos abaixo, as regras foram infringidas no sentido de: ultrapassar 45 horas semanais ou de trabalhar até 10 horas ininterruptas e deixar as crianças sob responsabilidade da au pair sem motivo de urgência.
Entrevistado 27:
Hosts saíram de férias por 7 dias. Ficou somente eu e a ex au pair (que estava de visita) cuidando o dia inteiro das crianças, os avós não nos visitaram e não ofereceram ajuda nesse período. Não nos pagaram pelas noites trabalhadas, somente as horas extras do dia.
Entrevistado 65:
Já trabalhei quase 60 horas semanais porque a host-mom viajou.[2]
Além de não respeitarem as regras básicas do programa, há ainda famílias que não respeitam regras básicas de convivências:
Entrevistado 41:
Fiquei com uma família horrível na Flórida por 3 meses, onde a mesma achava que eu era a empregada, não compravam comida e achavam absurdo eu usar 15 minutos do meu tempo para comer.
Junto a essa realidade, há também relatos de au pairs que exercem outras funções para além da atividade de au pair:
'Melhor experiência é poder ter tempo disponível para brincar com as crianças. Sempre tive crianças com muitas atividades, o que acaba prejudicando o tempo livre de brincar com elas, passando a au pair a ser uma “cozinheira, faxineira, motorista”.’
O termo “troca cultural” é apresentado na Lei “Public diplomacy and exchanges” do governo norte-americano, afirmando que a “au pair poderá viver com uma família americana e participar da vida doméstica”. Além do termo “troca cultural”, há ainda o termo “big sister” que se refere às au pairs como parte da família, uma “grande irmã". Junto com essa realidade, há relatos como “a gente nunca vai ser parte da família dos chefes.” e “Não é ruim, porém não é minha casa e minha família, então eu vivo pisando em ovos.”.
Para Perez (2009), a experiência turística proporciona vivências sociais e culturais, de modo que o turista vai em busca da troca cultural, consome experiências e sensações, ao invés de meros produtos e serviços. No caso do programa Au Pair, a ideia de troca cultural parece não ser totalmente correspondida e nem validada, por exemplo, pelo uso do termo “big sister”. Hess & Puckhaber (2004) afirmam que agências utilizam esse termo para atrair jovens, a partir da ideia de que farão parte da família anfitriã. Diferente, entretanto, do que ocorre no programa Au Pair, que não garante necessariamente as condições para que os participantes usufruam da experiência cultural como desejavam.
Combinando esses fatores expostos, a pesquisa teve como princípio questionar quais são as características do programa Au Pair e até que ponto sua realidade prática pode ser entendida como “troca cultural” ou trabalho doméstico. Para Chuang (2013) os interesses das agências estão acima dos direitos dos participantes, fazendo com que as au pairs sejam vulneráveis e suscetíveis a abusos psicológicos e trabalhistas.
Entrevistado 51:
O programa, hoje em dia, está muito defasado. Não existe um controle real, as au pairs se sentem reféns.
Entrevistado 54:
(Falta) a compreensão de que o au pair também é um intercâmbio e não apenas mão de obra barata.
Entrevistado 26:
Mais assistência das agências para as au pairs e que seja mais claro para as famílias o que eles esperam de uma au pair.
Entrevistada 41:
As regras serem claras de um programa de intercâmbio e não apenas um trabalho.
Cada au pair relatou a sua experiência sobre o programa e também se destacaram relatos positivos como: “A família pagou a minha passagem para o Brasil para visitar a minha família.”; “A experiência está sendo conhecer pessoas maravilhosas, que vou levar sempre no seu coração. Sentir um amor de mãe sem ao menos ter tido uma criança.” e “Minha família é uma ótima família, cumpre todas as regras e me ajuda em tudo que eles podem, são compreensíveis e não trabalho no final de semana.”
A pesquisa realizada teve a finalidade de expor uma nova perspectiva do programa de intercâmbio au pair, para além do que é oficialmente apresentado. Os relatos apresentados tiveram como ideia expor a realidade do programa sob a visão das au pairs e contribuir para reflexões sobre a regulamentação e regras do intercâmbio em questão.
Referências bibliográficas:
Chuang, J. A. (2013). The U.S. Au Pair Program: Labor Exploitation and the Myth of Cultural Exchange. Harvard Journal of Law & Gender, 36, (2), 269- 344.
Department of State > Public diplomacy and exchanges >§ 62.31. Au Pair. https://www.govinfo.gov/content/pkg/CFR-2012-title22-vol1/pdf/CFR-2012-title22-vol1-sec62-31.pdf.
Facebook. Grupo Au pair - Grupão do Amor. (n.d). Grupo do Facebook. Retirado em setembro 20, 2020, de https://www.facebook.com/groups/aupairdoamor.
Hess, S., & Puckhaber, A. (2004). “Big sisters” are better domestic servants?! Comments on the booming au pair business. Feminist Review, 77(1), 65-78.
Pérez, X. (2009). Turismo Cultural: uma visão antropológica. Turismo Cultural. Coleción PASOS.
STB. (n.d). Au Pair nos Estados Unidos. https://www.stb.com.br/trabalhar-noexterior/au-pair.
[1] Pesquisa realizada, por Isabela Ayra, durante o curso de graduação em Turismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo sob orientação da Profa. Ana Carolina Padua Machado. Os resultados obtidos foram apresentados no 2° Seminário Virtual ‘Perspectivas Críticas sobre o Trabalho no Turismo’ da Universidade Federal do Tocantins, no dia 19 de agosto de 2021. O resumo expandido da pesquisa está disponível nos anais do evento. [2] Os trechos apresentados foram retirados dos formulários online aplicados, com caráter informal e anônimo. Os nomes dos entrevistados foram preservados.
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