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Terceirização e precarização no setor de eventos

Marcella Silva[1], Natasha Bantim[2] & Maria Angélica Costa[3]


Considerando que grande parte dos recursos humanos no setor de eventos se caracteriza por profissionais terceirizados (ABEOC, 2013) e informais, ocupando funções com pouca, ou nenhuma, qualificação para tal (Guimarães, 2015), investigou-se a contratação de funcionários terceirizados por empresas de eventos (Oliveira, Bantim e Costa, 2020) e os resultados estão aqui sintetizados.


Fonte: Arquivo pessoal de Marcella Silva.


A contratação temporária e a terceirização de serviços são estratégias advindas do modelo neoliberal que representa um regime de acumulação associado com um sistema de regulamentação política e social bem distinta, denominado por Harvey (1998) de ‘acumulação flexível’. A acumulação flexível se apoia na flexibilidade dos processos e dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo e implica o desemprego estrutural, rápida destruição e reconstrução de habilidades, ganhos modestos e o retrocesso do poder sindical, dando início a uma reestruturação radical no setor trabalhista.


Assim, o contrato de trabalho sólido, com todos os direitos e obrigações previamente definidos e inalterados ao longo de sua duração são trocado por modelos menos rígidos, a partir da chamada ‘reestruturação produtiva’, com postos de trabalho sem vínculos trabalhistas, perda de benefícios indiretos, extensão da jornada laboral além do estabelecido pela legislação e transferência para os trabalhadores das responsabilidades de toda e qualquer imprevisibilidade do processo produtivo (Buonfiglio, Dowling, 2006).


Nesse contexto, a terceirização é um novo termo para o fenômeno da flexibilização das relações de trabalho, ou nova denominação para a antiga "subcontratação”. Apela-se para "a vocação da empresa”, que deve transferir, sair de tudo que não represente seu objetivo-fim, mas, curiosamente, transfere a terceiros cada vez mais a atividade-fim, a produção parcial ou mesmo total (Buonfiglio, Dowling, 2006). Com isso, cria-se uma série de trabalhadores dos mais variados cargos sem vínculo trabalhista com a empresa e surgem também os "postos de serviço", unidades da própria empresa, interiorizadas, que apesar de manter a relação contratual legal, não oferecem nenhum outro benefício.


Além dessa precarização nas relações de trabalho, destaca-se ainda que algumas empresas optam pela contratação de recursos humanos pouco qualificados, de forma a reduzir ainda mais os custos de suas operações, o que, eventualmente, pode gerar impactos negativos na qualidade do serviço oferecido e na imagem junto ao seu público. Parte do empresariado justifica essa situação culpando os próprios profissionais, indicando uma fraca qualificação dos trabalhadores no segmento de eventos (Costa, 2008). Porém, estudos indicam que egressos de cursos de capacitação no setor de turismo e eventos (como agentes de informação turística, organizadores de eventos, recepcionistas, etc) encontraram dificuldades de inserção no mercado de trabalho (Fratucci, Bantim, Melo, 2017), inferindo-se, portanto, que há profissionais qualificados disponíveis, porém eles não são utilizados/valorizados.

Para exemplificar o modelo de contratação no setor de eventos e refletir sobre a precarização das relações de trabalho no setor, realizou-se um estudo de caso em uma empresa de eventos com sede na cidade do Rio de Janeiro que possui em seu portfólio eventos importantes, de alcance midiático mundial, bem como prestação de serviços em atrativos turísticos reconhecidos internacionalmente. Sua principal forma de trabalho é a contratação de freelancers (trabalhadores autônomos, muitas vezes informais, atuando de forma terceirizada ou temporária). Foram observados os seguintes aspectos:


As vagas ofertadas pela empresa costumavam ser disponibilizadas principalmente pelo aplicativo whatsapp em grupos compostos por freelancers e pessoas que trabalham com figuração em teledramaturgia e comerciais. Haviam também as contratações feitas por indicações de pessoas que já trabalharam na empresa. Observou- se que: a) a empresa indica, muitas vezes, que não é necessário ter experiência em atendimento ao público para exercício da função; b) intervalos pequenos entre as datas de recrutamento e de realização do evento, gerando pouco tempo para treinamento dos profissionais para exercício de suas funções; c) “contratação” feita por acordos por meio do aplicativo ou redes sociais e contato pessoal apenas no dia do evento, gerando desistências frequentes.


Há uma equipe responsável pelo trabalho de campo supervisionando o trabalho dos contratados, entretanto, eventualmente, o número de freelancers é muito maior do que a quantidade de supervisores, o que abre brechas para falhas, alinhado à falta de treinamento dos mesmos para exercício da função (ver imagem a seguir).


Fonte: Reprodução Página do Facebook.


Depoimentos como esse indicam o improviso para realização do trabalho e ressaltam fragilidades da empresa em relação aos serviços prestados e ao tratamento aos profissionais envolvidos.


Foram analisadas as páginas nas redes sociais oficiais da empresa com filtro de busca para o período entre 2013 e 2019. Apesar de identificadas algumas reclamações em relação ao tempo de espera e qualidade de atendimento, a quantidade foi pouco expressiva. Considerando que o serviço é terceirizado, o público não identifica a empresa estudada como a responsável pela prestação de serviços mas sim a empresa contratante do evento. Assim, ampliando a busca para as redes sociais de algumas empresas contratantes da empresa estudada foram identificadas reclamações referentes a serviços prestados pela mesma, embora não atribuídos a ela. Uma das consequências da terceirização é justamente a mitigação da percepção do público sobre a empresa responsável pela prestação do serviço, que acaba transferindo para os trabalhadores, que estão na ponta do processo e lidando diretamente com o público, as responsabilidades do processo produtivo e consequentes reclamações (Buonfiglio e Dowling, 2006).


Por fim, foi elaborado um formulário online através da ferramenta Google Forms e postado em grupos com pessoas que prestam serviços de forma terceirizada ou freelancers, tendo retorno de 36 formulários validados. A maioria dos respondentes afirmou ter entre 18 e 24 anos, identificados com o gênero feminino, com renda familiar de até 2 salários mínimos. Observou-se que boa parte dos respondentes possui qualificações como graduação em curso em turismo, segundo idioma ou curso técnico relacionado ao setor de eventos. Entretanto, os respondentes apontaram que não foi a qualificação, e sim, a indicação, o principal fator de contratação e apesar de verem a qualificação com um diferencial em sua atuação, indicaram sentir falta de treinamento para exercício de suas funções.


A falta de critérios de seletividade dos funcionários que atuam na empresa organizadora de eventos e o descaso no treinamento dos mesmos retratam uma precarização na relação entre empresa e trabalhadores, onde a primeira abre mão da qualidade do serviço em troca de recursos humanos baratos, desqualificando o profissional apto para exercer a função. A empresa estudada parece não se importar com as consequências na qualidade do serviço prestado, já que o regime de terceirização acaba mitigando a percepção da responsabilidade pelo serviço prestado e sua imagem acaba não sendo afetada.


Evidentemente, essa é a realidade que se apresenta na empresa estudada, sendo necessários maiores estudos, em outros contextos, para realização de um diagnóstico sobre as relações de trabalho que se estabelecem no setor de eventos no país como um todo.



 

Referências:

ABEOC BRASIL (2014). II Dimensionamento Econômico da Indústria de Eventos do Brasil. SEBRAE NACIONAL

Buonfiglio, M. C; Dowling, J. A. (2009) Reestruturação produtiva na indústria de transformação do nordeste: Fortaleza, Natal, João Pessoa e Recife. Disponível em <http://www.cchla.ufpb.br/unitrabalho/gtt1/livro/livrcap5.html>. Acesso em 07/07/2009.

Costa, J. H. (2008). Trabalhadores de verão: políticas públicas, turismo e emprego no litoral potiguar. Dissertação de mestrado, geografia. UFRN.

Fratucci, A.; Bantim, N.; Melo, R. (2017). O Pronatec Turismo para além da empregabilidade: percepções na cidade do Rio de Janeiro–RJ (Brasil). Revista Turismo & Desenvolvimento, n. 27, p. 153-155.

Guimarães, R. C. V. (2015). Trabalho informal e grandes eventos na periferia do capitalismo. Khóra: Revista Transdisciplinar, 2(2).

Harvey, D. (1998). Condição Pós-Moderna: Uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 7. ed. São Paulo: Edições Loyola.

Silva, M. O.; Bantim, N.; Costa, M. A. M. (2020). Precarização do trabalho no setor de eventos: um estudo inicial sobre os impactos para os trabalhadores e empresas. Revista de Turismo Contemporâneo, v. 9, n. 1, p. 1-23.



[1] Bacharel em Turismo pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ [2] Coordenadora técnica do eixo turismo, hospitalidade e lazer da ETEJK-FAETEC. Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ); mestre em Turismo (PPGTUR/UFF); bacharel em turismo (UFF) e administração (UFRRJ). [3] Professora adjunta no Departamento de Administração e Turismo da UFRRJ. Bacharel em Turismo, com especialização em Educação Ambiental e Recursos Hídricos (USP), mestrado em Geografia (IGC/UFMG) e doutorado em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ).

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