Daniela Alves Minuzzo[1] | UFRJ
Crédito: Massa Madre.
A confeitaria é a especialidade da culinária voltada para as preparações doces. Embora já seja bem estabelecido que a alimentação humana como um todo vai muito além das questões fisiológicas e de sobrevivência e está completamente relacionada com questões culturais e emocionais, quando pensamos nos doces e sobremesas, essa relação se acentua, dado que este consumo ocorre, prioritariamente, pelo prazer e pela satisfação de um desejo (Coró, 2011).
Ao falarmos dos significados da sobremesa, estamos falando de “preferência e atração, desejo e prazer, tentação e satisfação, somados a afeto, encantamento, compartilhamento e nostalgia” (Coró, 2011, p. 197). Esta descrição remete a diversas características associadas a uma suposta “essência feminina” e a discursos que sustentam um imaginário sobre o feminino permeado de sedução, beleza e capricho (Venturini e Godoy, 2017, p. 48). Segundo essas concepções estereotipadas e essencialistas, a mulher, ao contrário do homem, seria afetiva, carinhosa, ingênua, passiva e sensível (Ribeiro, 2006, p. 74).
Importante compreendermos que estas suposições do que uma determinada sociedade entende sobre o que é ser mulher, passa por transformações históricas, geográficas e culturais. Ainda que a biologia ou a natureza, em muitos aspectos, seja frequentemente utilizada como argumento para explicar as possíveis diferenças entre os gêneros, há um consenso que ser mulher ou ser homem é, na verdade, uma construção social e simbólica (Colling, 2004, p.29). Ser mulher, portanto, não dependeria de um único ato, mas de uma construção relacionada a gestos, vestuário, comportamentos, dentre outros ensinos cotidianos constituídos a partir das normas e valores de cada cultura (Louro, 2008, p. 17).
Ao longo da história, é possível acompanhar as diversas transformações e conceitos adotados em relação à figura feminina. Acrescenta-se que o gênero, por si só, não explica toda a gama de pressuposições e responsabilidades colocadas nos indivíduos, capazes de gerar um ambiente permeado por desigualdades (Carloto, 2001, p. 202). Raça, classe social, sexualidade, dentre outros, são aspectos que se relacionam com este cenário. Assim, enquanto historicamente a mulher branca era vista como um corpo para reproduzir e formar família, as mulheres negras eram descritas como “objetos servis”, desvinculadas da imagem de mãe e cuidadora.
Sueli Carneiro (2014) nos instiga a pensar nesta questão a partir de um questionamento: “de que mulheres estamos falando?”. O mito da fragilidade feminina, por exemplo, tão presente no imaginário social desde muitos anos até os dias atuais, nunca se aplicou às mulheres negras, uma vez que, durante séculos de escravidão, elas trabalhavam nas lavouras ou nas ruas.
Essas relações de alteridade e hierarquia da sociedade, se manifestam também nas relações laborais, pela chamada divisão sexual do trabalho, conceituada como, “a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais entre os sexos” (Hirata e Kergoat, 2007, p. 598). Assim, os estereótipos de gênero se relacionam com um aspecto da divisão sexual do trabalho denominada ‘segregação horizontal’, que concentra mulheres e homens em profissões ou setores de determinada atividade econômica ou cargos específicos.
No cenário da cozinha profissional, a segregação horizontal se manifesta por uma maior participação das mulheres nas áreas de cozinha fria ou da confeitaria e dos homens nas áreas da cozinha quente e de manipulação de carnes. Segundo Briguglio (2017, p. 7), “há uma forte associação da grelha, do fogo e da carne com os homens”, sendo estas as posições de maior valor simbólico dentro da cozinha. Já as mulheres são associadas a trabalhos que demandam características consideradas como “naturais” da figura feminina, como, por exemplo, a delicadeza, a paciência, o cuidado e a atenção aos detalhes. Sendo assim, as mulheres são muito associadas, dentre outras, à área da confeitaria.
Dado este contexto, eu e Letícia Madeira realizamos uma pesquisa com o objetivo de investigar as relações de gênero na cozinha profissional, em especial na confeitaria profissional, a partir da associação com padrões sociais do feminino. A pesquisa consistiu na realização de entrevistas com sete profissionais (quatro mulheres e três homens) atuantes no mercado de alimentação na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2019. A análise das falas relevou muitos aspectos interessantes, os quais tratarei resumidamente a seguir.
Dentre as palavras usadas para descrever o perfil de um/a profissional de confeitaria surgiram termos relativos à disciplina, delicadeza, precisão, criatividade, atenção e minúcia. Termos muito semelhantes surgiram, quando as/os entrevistadas/os descreveram características ligadas às mulheres como sensibilidade, precisão, perfeccionismo, cuidado, atenção aos detalhes e delicadeza, citada, inclusive, como “instinto da mulher” por uma das entrevistadas.
A pesquisa também revelou a percepção de um dos entrevistados de que o trabalho pesado pode ser muito bem feito quando realizado por mulheres negras, rompendo com o mito da fragilidade feminina do qual as mulheres negras nunca fizeram parte, como nos aponta Sueli Carneiro (2003), porque estas trabalhavam desde o período da escravidão, e foram excluídas do estereótipo feminino, que é o relacionado ao ideal de mulher branca.
Dentro desse cenário, é possível identificar uma relação com o pensamento de Nogueira (1999, p. 44), quando esta diz que a mulher negra é privada de viver qualquer aspecto da sua feminilidade. Considerando que esta questão surgiu a partir da fala de apenas um dos entrevistados e reconhecendo as limitações desta pesquisa, acredito ser fundamental um estudo que aprofunde o entendimento sobre as associações de gênero, raça e a confeitaria.
Também foi observada a relação de masculinidade e orientação sexual na confeitaria com uma associação do homem confeiteiro sendo visto como homossexual, citado por dois entrevistados. Ao não atender aos estereótipos de masculinidade, pelo fato de se esperar que os homens sejam direcionados a tarefas mais brutas e as mulheres a tarefas mais delicadas (Briguglio, 2017, p. 7), quando esse cenário se inverte, o homem se associa a figura feminina, deixando de ser o que se considera como um “homem de verdade”. As citações dos entrevistados se aproximam do relato de Scavone (2008, p.3) quando menciona a frase “meu lado gay é sapatona”, dita por um aluno em uma tentativa de justificar sua inaptidão para montar e decorar pratos.
Tais aspectos, tanto de raça, quanto de sexualidade, reforçam a importância de uma abordagem interseccional, proposta por Kimberle Crenshaw (2004), ao analisar as distintas formas de opressão.
Observamos ainda uma maior presença feminina nas equipes dos locais especializados na área de confeitaria, tanto da cozinha quanto do atendimento, com um relato de que os currículos recebidos vinham em número mais expressivo das mulheres, evidenciando o quanto os estereótipos de gênero podem direcionar homens e mulheres de forma mais intensa para determinadas áreas. Este cenário pode estar relacionado com as expectativas a nível profissional, com os homens e as mulheres dando preferência a empregos considerados mais “adequados” a seu gênero, limitando, em última instância, as oportunidades de atuação profissional.
Com base nos relatos dos entrevistados, destacou-se também o fato de que essa associação não vem somente por parte dos profissionais de cozinha, mas também dos clientes, apesar da questão ter sido abordada apenas superficialmente, uma vez que o estudo teve como direcionamento a visão dos profissionais de cozinha e não dos consumidores, cabendo pesquisa adicionais para compreender melhor essa relação.
É interessante destacar a fala de uma das entrevistadas que faz uma comparação entre o trabalho dos homens e das mulheres dentro da confeitaria, observando uma supervalorização das funções quando exercidas pela figura masculina, uma vez que as características necessárias para trabalhar dentro da confeitaria já seriam tidas como “naturais” da mulher. O homem, por outro lado, precisaria de um “esforço maior” para alcançar esse perfil, e por isso seu trabalho seria mais valorizado.
Essa fala reflete o princípio hierárquico da divisão sexual do trabalho de que o trabalho feito pelo homem tem maior valor social do que aquele exercido pela mulher (Hirata; Kergoat, 2007, p. 599). Também segundo Bourdieu (2002, p. 75), “as mesmas tarefas podem ser nobres e difíceis quando são realizadas por homens, ou insignificantes e imperceptíveis, fáceis e fúteis, quando são realizadas por uma mulher”, completando, ainda, que isso pode ser visto na relação entre o cozinheiro e a cozinheira.
Quando perguntadas/os sobre a quantidade de chefs homens e chefs mulheres com quem já trabalharam, as/os entrevistadas/os afirmam terem trabalhado com muito mais chefs homens, alguns chegando a nunca ter trabalhado com uma mulher no posto de comando da cozinha. Apesar da intensificação da participação das mulheres no mercado de trabalho, observamos que estas ainda ocupam postos precários e de menor hierarquia, permanecendo as desigualdades salariais (Hirata, 2002; Hirata, 2007). Esse cenário é ainda mais desigual quando falamos das mulheres negras, que após o período escravagista, tinham que aceitar trabalhos mal remunerados em nome de sua própria sobrevivência.
Outro ponto da entrevista que se relaciona com esta questão foi a pergunta sobre personalidades inspiradoras do meio gastronômico, em que surgiram dez nomes masculinos (como Alex Atala, Buddy Valastro e Alain Ducasse) e somente quatro femininos (como Paola Carosella, por exemplo). As respostas refletem a baixa projeção e baixo reconhecimento do trabalho das mulheres tanto na mídia, quanto nas premiações internacionais e nacionais.
A maioria esmagadora de nomes de chefs, cozinheiros e personalidades em geral na gastronomia que alcançam projeção, são de homens. Adicione-se a isso que a maioria desses homens são brancos e que também as mulheres, quando têm seu trabalho reconhecido, são esmagadoramente as mulheres brancas. A revista britânica The Restaurant, que publica anualmente as listas dos 50 melhores restaurantes do mundo, entre outras listas, tem uma premiação individual de “Melhor chef confeiteiro”, que premiou uma mulher pela primeira vez apenas em 2019, sendo todos os premiados dos anos anteriores do gênero masculino.
Estes foram alguns dos achados dessa pesquisa, que se caracteriza por uma investigação inicial e cujas limitações suscitam a necessidade de um aprofundamento maior das questões propostas e analisadas. Considero serem inúmeras as possibilidades de investigação dentro desse escopo e espero que este texto possa motivar mais pessoas a seguirem este caminho.
Embora sem conclusões fechadas ou definitivas, considero ser importante não apenas uma maior presença das mulheres dentro das áreas da gastronomia, como a ocupação de cargos não necessariamente associados à feminilidade, como meio de romper com estereótipos construídos em torno na figura da mulher e de reorganizar as relações de poder na sociedade que fortaleçam a autonomia e emancipação das mulheres.
[1] Professora do curso de bacharelado em Gastronomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tecnóloga em Gastronomia, bacharel em Nutrição, mestre em Ciência de Alimentos e doutoranda em Alimentação, Nutrição e Saúde com pesquisa sobre as relações de gênero nas cozinhas de restaurantes. Coordena a ação de extensão ‘Cunhã: Gastronomia, Alimentação e Feminismo’. E-mail para contato: daniela.minuzzo@gmail.com
Observação: Este texto se originou a partir da pesquisa do Trabalho de Conclusão de Curso no bacharelado em Gastronomia da UFRJ de Letícia Madeira de Castro Santos, orientado por mim, cujos resultados foram publicados no artigo: SANTOS, Letícia Madeira de Castro e MINUZZO, Daniela Alves. “A mulher é mais delicada”: um estudo sobre a associação da figura feminina à área da confeitaria profissional. Iluminuras, Porto Alegre, v. 20, n. 51, p. 176-215, dezembro, 2019. Link: https://seer.ufrgs.br/iluminuras/article/view/97444
Referências:
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