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Lugar de mulher é na cozinha? O trabalho das mulheres nas cozinhas profissionais

Atualizado: 15 de jan. de 2021

Cecília Ulisses | Mestranda em Turismo/UFPR


Hoje em dia, pode ser raro que alguém diga que “lugar de mulher é na cozinha”. Pelo contrário, as mulheres têm mostrado, a cada dia, que o nosso lugar é onde quisermos. Ainda assim, uma reflexão importante pode ser feita a partir desse dito popular.


Por trás desse tipo de afirmação está a associação das mulheres à responsabilização pela tarefa de cozinhar, mas não em qualquer cozinha. Esse dito se refere à cozinha doméstica. Cozinhar, assim como outras tarefas domésticas e atividades de cuidado, são realizadas majoritariamente por mulheres. Os dados da PNAD mostram que, em 2018, as mulheres dedicaram 21,3 horas semanais ao trabalho doméstico e/ou de cuidado, 10,4 horas semanais a mais que os homens. Enquanto 95,5% das mulheres realizaram a atividade de “preparar ou servir alimentos, arrumar a mesa ou lavar louça”, 60,8% dos homens fizeram o mesmo (IBGE, 2019).


Outra questão importante nesse sentido é que o trabalho doméstico é, muitas vezes, ainda hoje, um trabalho invisibilizado. Isso por ter sido realizado, historicamente, pelas mulheres, de forma gratuita, como se fosse atribuição natural, sem ser considerado, como trabalho, verdadeiramente (SARDENBERG, 2002; HIRATA; KERGOAT, 2008).


Quando observamos o que se passa na cozinha profissional, podemos considerar dois cenários (apesar de haver ainda outros, mas neste texto não se considerou a realidade de, por exemplo, cozinhas industriais ou cozinhas de navio): em cozinhas associadas a restaurantes populares, de comida caseira, as mulheres são maioria. São cozinhas que importam relações e organização da cozinha doméstica. Já nas cozinhas mais prestigiadas, associadas à alta gastronomia, com hierarquia bem definida e divisão em praças, a equipe de trabalho (brigada) é majoritariamente masculina (COLLAÇO, 2008). Reflexo disso é que os homens são maioria quando se trata de reconhecer os melhores chefs do mundo. Na lista dos 100 melhores chefs para 2020, publicada em 2019 pela revista francesa “Le chef”, há apenas quatro mulheres.


Chef de cozinha em cozinha profissional. Crédito: Freepik


A cozinha clássica é um espaço mais masculino desde sua criação. Um dos chefs mais influentes na organização desta cozinha foi Escoffier (1846-1935), para quem as mulheres deveriam ser responsáveis pela nutrição da família, enquanto a cozinha da qual ele se ocupava seria uma “arte superior”, algo que transcende um “mero” afazer doméstico (DÓRIA, 2012).


Os padrões, códigos e modelos de gênero estão sempre em transformação, além de não serem os mesmos nas culturas, espaços e tempos históricos, nem nunca inteiramente internalizados (ALBUQUERQUE Jr., 2019). Assim, mesmo que essa ideia da cozinha profissional como “trabalho de homem”, enquanto a cozinha doméstica seria “trabalho de mulher” seja influente, as mulheres, cada vez mais, se colocam como cozinheiras profissionais e mesmo chefs. Isso não ocorre, porém, sem dificuldades provenientes de tais crenças. Isso ficou claro com a análise de entrevistas realizadas entre março e maio deste ano de 2020, online, com mulheres e homens com experiência enquanto cozinheiros/as e chefs de cozinha.


O trabalho nas cozinhas profissionais é sempre descrito como algo difícil, físico e mentalmente cansativo, quando não extenuante. Trabalhadores e trabalhadoras da área lidam, frequentemente, com longas jornada de trabalho, durante as quais ficam em pé o tempo todo, além de, quando o restaurante está aberto, precisarem atuar num ritmo mais acelerado, lidando com a pressão pela entrega de pratos dentro de um tempo limitado. Tudo isso ocorre, muitas vezes, em períodos noturnos, finais de semana e feriados, o que afeta o convívio com família e amigos.


Essa exigência de dedicação em horários que muitas vezes vão na contramão do que seriam os horários convencionais faz com que seja comum que as mulheres que têm filhos, especialmente crianças, sejam preteridas no momento de contratação. Sobre isso, explicou uma chef de cozinha:


Nos outros restaurantes que eu trabalhei a preferência era sempre por contratar homens por haver uma crença, mas não pela qualidade do trabalho, mas por haver uma crença que homem pode trabalhar no final de semana, homem pode ficar até mais tarde, homem não tem que socorrer filho. E não, né? Normalmente não tem mesmo. Então existia uma preferência por contratar homens por conta disso.

Além disso, em alguma medida, sobrevive nesse universo a associação de características binárias, com base na biologia, às capacidades de mulheres e homens. Desse modo, aos homens é associada a característica da força física, algo valorizado para se possa “aguentar” o trabalho pesado da cozinha. As mulheres, por outro lado, são consideradas detalhistas.


Isso parece contribuir para que haja uma divisão sexual do trabalho interna às cozinhas profissionais, direcionando as mulheres para a área de confeitaria enquanto os homens seriam mais adequados para trabalhar na cozinha quente, lidando com carne, por exemplo. Tanto que, quando há uma mulher trabalhando, por exemplo, com churrasco, isso gera surpresa. É o caso de uma chef parrilheira entrevistada:


(...) Então eu pego o porco, levo para serra-fita. É muito engraçado, sabe. Então, tipo, as pessoas se surpreendem de ver. Então eu acho legal, sabe, essa, esse choque que está tendo de realidade, porque você só vê homens, a maioria são homens.

Também ligado a esse binarismo de gênero está a crença de que os homens, entre si, podem agir de maneira agressiva, bem em conformidade com o modelo de masculinidade hegemônica, que tem como traço distintivo a virilidade (ALBUQUERQUE Jr,. 2019), enquanto as mulheres devem ser tratadas de forma diferente. Nessa linha, um cozinheiro afirmou:


É muito mais fácil eu chegar para um homem, dá uma comida nele, vamos dizer assim, tipo “ah, cara, tal” do que chegar para uma mulher e fazer isso né? Porque mulher geralmente tu vai querer tratar, não que você vai querer tratar, você, geralmente, você trata a mulher diferente, né? Eu, particularmente, eu gosto de trabalhar mais com homem dentro da cozinha porque se for para dar um esporro, se for... porque como é muito, é muito tenso, assim, você trabalhar, né, você vai acabar brigando. Porque vai ter alguém que “ah, cara, pega aquilo ali para mim” “porra, estou ocupado, estou não sei o que”, é mais fácil tu chegar assim para ele “cara, vai... [pausa] no seu... [pausa] e faz essa merda aí, cara!” do que eu chegar numa mulher e falar isso, entende? (...) Se o cara te retrucar, tu puxa ele, dá uns tapas e pronto, mulher não dá para fazer isso, né? E rola isso rola dentro da cozinha, né?

Essa mesma ideia certamente é compartilhada pelo antigo chef de uma das cozinheiras entrevistadas, o qual, conforme ela observou, tratava as mulheres de modo diferente, deixando subentendido que na visão dele, as mulheres não poderiam ser cobradas da mesma forma que um homem. Nessa fala há também um exemplo de objetificação feminina:


Ele [o chef de cozinha] era muito duro com os homens, assim, ele cobrava muito dos homens, falava muito, brigava muito com eles e com as mulheres, a gente ficava ali meio, para ele, obviamente, como um enfeite, sabe? Então ele não falava nada com a gente, ele não brigava com a gente, na verdade tratava a gente com muito carinho. Então ficava aquela de coisa de tipo, “pô, como assim eu não estou sendo cobrada do mesmo jeito?” Preferia estar sendo, né, escrachada como eles estão sendo, mas pelo menos ele está me cobrando, entendeu? Então já aconteceu o fato de, por exemplo, ele levava muito, muitos clientes na cozinha, para conhecer a cozinha e tudo mais e aí chegava ali na minha praça e ele “ah, essa é a nossa confeiteira, olha que bonita que ela é”. Então você fica ali, realmente como se você fosse um enfeitezinho na cozinha.

Brincadeiras, piadas, “zoações” são muito comuns na cozinha, como modo de tornar o ambiente mais leve e aliviar o clima tenso. Também parece ser uma forma de se criar laços entre os profissionais (HARRIS; GIUFFRE, 2020). No entanto, com relação às mulheres, esse bullying com muita frequência ganha conteúdo sexual, transformando-se em assédio. As próprias mulheres, às vezes, relutam em classificar tais brincadeiras “que de engraçadas não têm nada”, como disse uma entrevistada, como assédio, de fato. Porém, é frequente que as mulheres escutem comentários inapropriados a respeito do seu corpo, da sua aparência, e mesmo convites para sair, em meio ao trabalho. Uma entrevistada relatou, nesse sentido:


Comigo uma vez, eu achei que foi, não sei a que ponto eu posso classificar isso assim como assédio. Mas era muito, do tipo, ai, fazer um elogiozinho aqui, fazer uma brincadeirinha ali, sabe? E quase sempre com relação à aparência, ou alguma coisa que eu estava usando, não sei o quê. Era o chef da cozinha. Ele nunca aparecia para ajudar ninguém, aí um dia eu tive que trabalhar sozinha, daí ele foi lá para me ajudar e daí me convidou para sair, não sei o quê, sabe assim uma coisa meio misturada, então... que eu não me senti à vontade, porque a gente estava no ambiente de trabalho e estava tipo só nós dois, e eu não achei que foi legal.

Esse assédio está muito relacionado ao estereótipo do chef de cozinha que é uma mistura de bad boy e rock-star (chefs excêntricos, conforme uma das entrevistadas), e faz uso frequente de palavrões, agressividade e brincadeiras de cunho sexual, tudo isso tendo sido normalizado, à medida que estes surgiam como celebridades na mídia (HARRIS; GIUFFRE, 2020).


O caso mais explícito ouvido nas 28 entrevistas realizadas, vivenciado por uma confeiteira, foi relatado por um cozinheiro e merece ser relatado:


A gente estava no meio do serviço e a gente serve uma sobremesa que vai sorvete e tinha acabado, e tinha saído muito. E a única pessoa que tinha a chave no momento para pegar o sorvete era o chef. A menina que trabalha na confeitaria ela falou “chef, acabou o sorvete de coco, você pode pegar um para a gente?”, e como a gente [inaudível] brincadeiras muito [ênfase] sem graça, ele deixa as pessoas desconfortáveis. Ele falou “a chave está no meu bolso. Pega aqui”. Ela foi inocente e pegou, colocou a mão no bolso, ele começou a gemer! (...) Todos os homens em volta, todos [enfatizou o “todos”], riram. Acharam engraçado. Então eu achei que foi muito desnecessário.

Tudo isso faz com que as mulheres sintam que, nesse ambiente profissional, elas não são vistas, de início, como profissionais capazes. A credibilidade precisa ser conquistada: elas precisam sempre “botar o valor a prova”. É isso que torna o trabalho nas cozinhas ainda mais difícil para as mulheres.


Cozinhar, assim como as outras tarefas domésticas e de cuidado, precisa ser visibilizado enquanto trabalho, e ser compartilhado igualmente por todos que dele se beneficiam. Ao mesmo tempo, o trabalho na cozinha profissional, com todas as suas características que afetam o equilíbrio entre vida pessoal e profissional de homens e mulheres precisa ser humanizado. No que se refere aos fatores que tornam a situação das mulheres nesse ambiente ainda mais difíceis, estes estão ligados a concepções tradicionais polarizadas de gênero. Estas concepções precisam ser superadas, de modo que as relações sejam pautadas pela justiça, colocando fim a práticas recorrentes que prejudicam as mulheres, dentre as quais o assédio.

 

Referências:

ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. Masculino/Masculinidade. In: COLLING, Ana Maria; TEDESCHI, Antonio. Dicionário crítico de gênero. Dourados: UFGD, 2019. p. 489-495.

COLLAÇO, Janine Helfst Leicht. Cozinha doméstica e cozinha profissional: do discurso às práticas. Caderno Espaço Feminino, v.19, n.01, Jan./Jul. 2008.

DÓRIA, Carlos Alberto. Flexionando o gênero: a subsunção do feminino no discurso moderno sobre o trabalho culinário. Cadernos Pagu, v. 39, p. 251-271, julho-dezembro, 2012.

HARRIS, Deborah A.; GIUFFRE, Patti. Me too in the kitchen. Contexts, v. 19, n. 2, p. 22-27, 2020.

HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho profissional e doméstico: Brasil, França, Japão. In: COSTA, Albertina de Oliveira; SORJ, Bila; BRUSCHINI, Cristina; HIRATA, Helena (orgs). Mercado de trabalho e gênero. Comparações internacionais. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Outras formas de trabalho 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2019.

SARDENBERG, Cecília Maria Bacellar. Da Crítica Feminista à Ciência a uma Ciência Feminista? In: COSTA, Ana Alice; SARDENBERG, Cecília M. B. (orgs.). Feminismo, ciência e tecnologia. Salvador: NEIM/UFBA: REDOR, 2002, pp. 89-120.

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