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Trabalho precário em museus e a alienação de todos nós

Atualizado: 15 de jan. de 2021

Eline Tosta [1] | Mestranda em Geografia pela UFES

Vivemos a moral do trabalho de modo tão naturalizada que tanto o trabalho precário quando o lazer precário parecem ser irreversíveis na nossa sociedade. Essa moral faz com que direitos constitucionais como o trabalho justo, o acesso ao lazer e à educação parecerem utopia para grande parte dos brasileiros.


Vamos começar esse texto tratando do lazer precário. A natureza desse lazer tem como essência o divertimento apenas para nos distrair e nos desviar de pensar na nossa condição de vida, revelando-se como instrumento de dominação e de alienação. Mills (1965), ainda na década de sessenta, chamava atenção para o lazer predominado pela distração e não pelo estímulo à experiência criadora e pelo aperfeiçoamento humano. Sintomas de uma sociedade cativa dos modismos da Indústria Cultural.


Marcellino (2002) aponta, entretanto, que nem todo lazer é alienado e consumista. Para ele o lazer também pode ser ativo, verdadeiramente vivido e enriquecedor para o sujeito. Os museus são exemplos de estabelecimentos propícios ao lazer ativo e à educação, já que oferecem possibilidades de deleite e de estudo. Os museus estão a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, tendo papel de despertar o sentir, o pensar, o saber e o interesse de seu público usuário (MANSARD, 2006; LIZANA, 2007; TOWNSEND; ROCHA, 2015; ZUNZUNEGUI, 2003). Assim, configuram-se como importantes referências espaciais para a comunidade local e para turistas que visitam o destino.


Porém, os museus, muitas vezes, são estabelecimentos imponentes e intimidadores. A acessibilidade física não é suficiente para acessá-los completamente. O exercício ativo desse lazer inclui, sobretudo, o acesso à interpretação histórica e artística, o que reforça a atuação dos profissionais desses equipamentos no processo de comunicação dos valores do acervo visitado. Para isso é fundamental a intermediação de um intérprete que instigue a postura ativa do lazer. Esse intérprete é o educador museal, o principal agente de orientação no percurso de visitação e, portanto, merecedor de compreensão e estudo da complexidade de sua atuação profissional.



Trabalho em museus: a realidade do educador museal


Os trabalhadores dos museus possuem vínculos individuais e pessoais com o acervo de seu ambiente profissional. Além disso, estão rotineiramente inseridos “numa arena de conflitos, imbuída em um jogo de relações de forças presente nas distintas significações e apropriações atribuídas aos objetos” musealizados (CASTRO; SOARES; COSTA, 2020, p. 10). Dessa maneira, essa profissão é, necessariamente, ideológica e política, exercendo importante influência na reflexão e na construção do pensamento crítico coletivo.



Além disso, atuar em museus detendo concepções inovadoras mas estando preso às rotinas e à inércia da instituição torna o exercício da profissão ainda árduo. Determinismos culturais, sociais, políticos e econômicos estão envolvidos no dia-a-dia desses profissionais e a sensibilidade torna-se imprescindível para a transmissão dos valores do acervo ao público visitante (MENDONZA, 2011).


Infelizmente, a precarização do trabalho tem afetado esses profissionais, já sucumbidos pela desvalorização da cultura no país. Cabe citar a extinção do Plano Nacional Setorial de Museus - 2010/2020 e o “rebaixamento” do Ministério da Cultura à mera Secretaria Especial da Cultura inserida no Ministério do Turismo para demonstrar o desdém pela área cultural. Como se não bastasse, a Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017) e a Nova Previdência (emenda constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019), impulsionou ainda mais o processo de “uberização”. Essa etapa inclui:

um amplo processo de precarização que desponta desde a não realização de concursos nas instituições públicas; à promoção de terceirizações, atrelando a atividade à volatilidades de projetos dependentes de financiamento público via leis de incentivo (ou a ausência destes) com prazos de realização determinados; as contratações no modelo Microempreendedor Individual (MEI); a utilização de estagiários no cumprimento de funções outrora realizadas por profissionais formados culminando com um possível (ou pretendido) fenecimento dessa atividade profissional no seio das instituições museais. Verificamos, nesse sentido, a uberização como uma etapa para extinção desta atividade profissional, preconizada como essencial ao campo desde meados do século passado (Coletivo 4+1, 2020).

As contratações podem ser por meio de Carteira de Trabalho assinada, de acordo com as Leis Trabalhistas do Brasil (CLT); Micro Empreendedor Individual (MEI), que são os contratos autônomos e contratos terceirizados, que são os trabalhadores temporários. Muitas instituições fazem essas contratações através de lei de incentivo cultural que, por sua vez, esbarram nos limitados investimentos direcionados ao setor.


Além da amplitude de tipos de contratações, os trabalhadores deparam-se com grande variedade de nomenclaturas de vagas, que inclui: educadores museais; monitores; monitores de galeria; mediador cultura; animador cultural; facilitador; educador; artista educador; arte educador; guia e mediador. Essa polissemia representa uma incógnita sobre as possibilidades de atuação, permitindo que cada museu tenha um regimento próprio para o desempenho de atividades que quiser.


Uma profissional entrevistada relatou que a tendência à precarização do trabalho de educador em museus deve-se à amplitude de possibilidades de nomenclaturas, de contratações e de regimentos, que afetam diretamente a atuação dos trabalhadores. Ela afirmou: “tem instituição que você tem o educador com carteira assinada e tem monitor que são estagiários, ou contratados por MEI [...]. Cada setor tem um padrão de contratação”.


Sobre a diferença de carga horária, alguns museus fazem diferenciação de acordo com o tipo de contratação, podendo variar de seis a nove horas por dia. Os dias trabalhados também variam, podendo ser de terça a domingo, com folga nas segundas-feiras, ou uma folga a um domingo por mês. Conforme a profissional entrevistada, essa situação “varia muito com cada instituição e com o regimento” da contratação, além da cronograma de funcionamentos do museu.


No caso de contratados por empresas terceirizadas, o trabalhador pode ser movido de um museu para outro conforme as necessidades do contratante. Um entrevistado que atua em uma instituição pública contou em entrevista que essa situação tende a ser amenizada em casos de “familiaridade” com o diretor do museu, que por conveniência preferem “segurar” sua vaga naquele estabelecimento por laços afetivos e manutenção da mesma equipe. Porém, sabemos que o contrário também é uma possibilidade.


Outra preocupação desses profissionais é a de investir constantemente em capacitação profissional, de preferência em áreas com poucos trabalhadores especializados. Uma das entrevistadas contou que atualmente desenvolve pesquisas e práticas com foco na acessibilidade universal (propostas pedagógicas voltadas para pessoas cegas surdas e com deficiências múltiplas). Em sua fala destacou a necessidade e importância do profissional de educação em museus sempre estude e foque nas lacunas do setor, de modo que seja possível tonar a experiência do lazer e da educação acessível a todos.



Perdem eles, perdemos todos nós


As recentes alterações trabalhistas trouxeram muita angústia e falta de perspectiva para essa classe de trabalhadores, já impactados pelo fomento insuficiente de políticas culturais. Sem a estabilidade de emprego e afetados pela sazonalidade (meses de alta temporada, período de exposições, etc...), a tarefa de ser ponte de interpretação e de comunicação entre acervo e visitantes é dificultada exponencialmente.


Dessa maneira, a flexibilização e uberização nos espaços museais comprometem ainda mais as possibilidades de lazer e emancipação da sociedade. Essa situação, muitas vezes, é conflitante com a função dos museus pois reprime as chances de uma intermediação dos valores entre o patrimônio e o público visitante. Afinal, como estimular o pensamento crítico sem medo de represálias estando num emprego sem estabilidade?


Utilizar educadores museais como recreadores significa entreter o público enquanto passeiam pelo percurso do museu, exercendo apenas a passividade do distrair-se. Para o visitante a experiência não acontece de forma tão envolvente tal qual deveria e poderia ser.


Assim, a precarização do educador museal é também uma expansão da precarização do direito ao lazer e à cultura, e, consequentemente, de intensificação da dominação e da alienação da sociedade de modo geral. A expansão neoliberal, que aumenta gradativamente o fosso social, não esgota as possibilidades de retirar direitos coletivos, entre eles o de gozo do tempo livre e à emancipação da sociedade através da educação, da arte e da cultura. Em vez disso, impele o ser humano à moral do trabalho e à precarização da vida.


 

Referências:

CASTRO, Fernanda; SOARES, Ozias.; COSTA, Andréa. Educação Museal: conceitos, história e políticas História da Educação Museal no Brasil & Prática político-pedagógica museal. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2020.

Coletivo 4+1. Uberização Museal: Uma Etapa Antecessora Da Extinção Laboral? Rio de Janeiro, Coletivo 4+1, 2020.

LIZANA, Manuel Ramos. El turismo cultural, los museos y su planificación. Gijón: Trea, 2007.

MANSARD, Luisa Fernanda Rico. Patrimonio cultural, Museos y turismo en México: trayectorias y encuentros. México D.C: Cuadernos de Patrimonio Cultural y Turismo, 2006. 12 p. Disponível em: <http://www.cultura.gob.mx/turismocultural/cuadernos/pdf14/articulo 4.pdf>. Acesso em: 3 ago. 2016.

MARCELINO, Nelson. Estudos do Lazer: uma Introdução. Autores associados: Campinas, 2002.

MENDONZA, Maria Laura. Museo Y Ocio. Nuevos Paradigmas Para El Museo Del Siglo XXI. II Seminario de Investigación en Museología de los Países de Lengua Portuguesa y Española, p. 433–445, 2011.

TOWNSEND, Nicolás Leyva; ROCHA, Ana María Lozano. Museos y Patrimonio Cultural. Revista Cuadernos de Música, Artes Visuales y Artes Escénicas, Bogotá, D.C., v. 10 n. 682. p. 9-13, jul. 2015. Disponível em: <http://revistas.javeriana.edu.co/index.php/cma/article/view/15084/Editorial>. Acesso em: 15 ago. 2016.

ZUNZUNEGUI, Santos. Metamorfosis de la mirada: museo y semiótica. Madrid: Catedra, 2003.


 

[1] Graduada em Turismo pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Mestranda em Geografia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: elineufes@gmail.com


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