Thiago Bicalho | Mestrando em Educação Tecnológica (CEFET-MG)
Crédito: Banco de imagens Canva
Ao iniciar os estudos em um curso de capacitação, técnico, tecnólogo ou superior, você visualizou a possibilidade de melhoria nas suas condições de trabalho e na valorização salarial? Esse sentimento comum entre cursistas de várias áreas profissionais não é diferente no turismo. Buscaremos entender essa relação entre qualificação e trabalho na realidade brasileira.
Em uma perspectiva histórica, o período colonial brasileiro provocou uma dualidade educacional que permanece até os dias atuais. O aspecto político dessa dualidade educacional inicia antes da Proclamação da República, em 1889, na qual o ensino superior no Brasil era destinado à uma classe social restrita objetivando a formação dos profissionais liberais para a manutenção dos prestígios sociais com a ocupação de postos “familiares” privilegiados no mercado de trabalho (Martins, 2002). Após 131 anos, permanece a ausência de leis que garantam políticas educacionais de Estado, permitindo que os governantes apontem caminhos para a educação brasileira segundo a ideologia do governo e/ou pela política econômica vigente.
Para superação da dualidade educacional e a ausência de políticas educacionais de Estado almeja-se a garantia de uma educação pública, gratuita e uniforme a todos, combinada com a produção material (associando a instrução, a ginástica e o trabalho produtivo), objetivando a eliminação do hiato histórico entre trabalho manual/intelectual, além de promover o protagonismo da comunidade e a garantia do desenvolvimento integral da personalidade pela educação (Bottomore, 1988).
A obtenção de conquistas no âmbito político é uma premissa importante para o sujeito em formação na contemporaneidade, já que vive em um tempo e espaço social bem demarcado pela globalização que influencia nos aspectos econômico, filosófico, social, comportamental, dentre outros da vida humana. Nesse contexto, a produção da vida em sociedade torna-se cada vez mais complexa devido à fluidez, principalmente no mundo do trabalho, forçando a educação a tomar um papel amplo, crítico e universal.
A relação entre trabalho/educação é uma das principais características dos estudos em educação tecnológica, nos quais consideramos e fundamentamos no saber-fazer, saber-pensar e criar, não findando na transmissão de conhecimento (Grispun, 2009 como citado em Silva, 2020). Os processos formativos em educação tecnológica devem buscar como objetivo primário “o entendimento das relações sociais de produção da vida humana em sua gama de complexidades” e como meta a “contínua qualificação e inovação com relação ao posicionamento do sujeito que se forma perante o mundo do qual participa” (Silva, 2020).
Neste artigo, em especial, buscamos problematizar se é possível acreditar na educação como um caminho de superação das condições precárias de trabalho no turismo.
Políticas de Qualificação no Turismo: o nó se apresenta
Faz-se necessário compreender que é tardia a discussão para construção de um entendimento quanto à qualificação profissional no turismo, assim como toda a educação é tardia na sociedade ocidental contemporânea (Jaeger, 1995). Podemos afirmar isso, já que na história humana primeiramente os sujeitos trabalharam e depois estudaram.
Nas atividades e trabalhos desenvolvidos sob a ótica do turismo não é diferente. Muitos trabalhadores começam a atuar no turismo sem nenhuma formação na área e, a partir de sua prática, qualificam-se para atuar nos empreendimentos do setor.
Ao tomar consciência dessa realidade e com o intuito de criar políticas efetivas para o turismo brasileiro, o Ministério do Turismo (MTur) desenvolveu uma pesquisa junto do Centro de Excelência de Turismo (CET) da Universidade de Brasília (UnB) para a construção das Diretrizes Nacionais para a Qualificação em Turismo (DNQT). Tardiamente, já que as diretrizes foram lançadas em 2015, após 12 anos da criação do MTur pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
As Diretrizes Nacionais para a Qualificação em Turismo provocaram a continuidade da pesquisa aplicada sob a coordenação da Universidade de Brasília, em parceria com universidades e institutos distribuídos no território brasileiro. Essa continuidade originou a Política Nacional de Qualificação no Turismo (PNQT), que apresenta 11 (onze) causas dos problemas identificados na pesquisa, chamados de “nós críticos”, e quanto à política, apresenta-se as premissas, princípios, estratégias de implementação, estrutura de gestão, execução e o Sistema Nacional de Planejamento, Monitoramento e Avaliação (SPMA).
Destaca-se que a pesquisa apresenta um nó crítico que consideramos chave para a discussão da relação entre a qualificação e o trabalho no turismo. Assinalado pela letra (k), o nó critico evidencia uma das causas dos problemas com a qualificação profissional do turismo, que é a
pouca alteração na mentalidade dos empresários do turismo sobre o papel da qualificação profissional e sua relação com a melhora do serviço prestado e a valorização salarial (Brasil, 2018, p. 25).
Esse nó apresentado evidencia a “mentalidade dos empresários” como determinante para o reconhecimento e valorização salarial do trabalhador após a realização da qualificação profissional. Isso nos conduz a fala do Ministro de Estado do Turismo em exercício no período de lançamento da Política Nacional de Qualificação no Turismo (PNQT), que afirma:
com a implantação da Política Nacional de Qualificação no Turismo, será possível o planejamento de curto, médio e longo prazo das ações que têm como objetivo melhorar a qualidade dos serviços e produtos turísticos e contribuir para consolidar o turismo como atividade geradora de emprego, renda e inclusão social no país (Brasil, 2018, p. 10).
Essa fala contém um discurso recorrente em que aponta o turismo como uma “atividade geradora de emprego, renda e inclusão social no pais”. Cabe a essa afirmação alguns questionamentos:
Quais condições de trabalho oferecidas nos empregos gerados?
A renda gerada por esses empregos são compatíveis com a qualificação e experiência dos profissionais?
Há, de fato, a inclusão social nos trabalhos respeitando a equidade de oportunidades entre classes sociais, raça, gênero, deficiência e outros marcadores sociais?
Qualificação e mercado de trabalho: o nó se aperta
Para traçar a relação entre qualificação e mercado de trabalho deve-se compreender a dinâmica de vagas de emprego e algumas configurações do comportamento dos empresários.
Em uma breve pesquisa em sites de vagas de emprego, é possível constatar a exigência de ensino superior completo, domínio de idiomas, domínio de informática, domínio técnico para função a ser exercida (ou experiência mínima), dentre outras com a informação “salário a combinar”.
Ao realizar um fragmento de pesquisa netnográfica em uma rede social conhecida pela sua vocação aos “negócios e network”, constatou-se o depoimento de uma trabalhadora do setor de eventos que recebeu uma proposta de trabalho. Ao questionar para a recrutadora os benefícios e salários, teve como resposta “R$ 1.000,00”, sendo R$ 45,00 abaixo do salário mínimo vigente no Brasil em 2020. Ao questionar a recrutadora sobre um possível engano no valor, a candidata a vaga recebe como resposta:
O mercado está passando por uma reestruturação (devido ao contexto da Pandemia COVID-19) e é o que podemos oferecer, e temos muitos candidatos que estão interessados.
Essa situação demonstra como o nó se aperta, ou seja, como não existe uma valorização salarial dos trabalhadores perante a qualificação e experiência acumulada no trabalho. Cabe ressaltar que essa situação vivenciada pela candidata à vaga de trabalho é uma clássica manifestação da visão dos economistas neoclássicos sobre o mercado de trabalho que acreditam na auto regulação da oferta/procura de emprego sendo que, quanto maior a quantidade de trabalhadores mais baixo são os salários. Nessa dimensão, o desemprego é considerado voluntário e pode ser categorizado como proposital - trabalhador desiste do setor e muda de área - ou ficcional - momento transitório entre demissão e contratação (Amado & Mollo, 2003).
O fragmento de pesquisa netnográfica realizada durante o período pandêmico no Brasil possibilitou a observação de que vários trabalhadores perderam seus postos de trabalho ou já buscavam a recolocação profissional antes do início da pandemia sendo afetados pelo contexto. Consequentemente, houve um aumento da disponibilidade de trabalhadores, formando um enorme “exército de reserva” para as empresas e gerando situações de precariedade como a citada.
A precarização do trabalho no setor e a desvalorização por parte dos empresários não se restringe ao período pandêmico. Manifestações desta precariedade podem ser constatadas nos programas de jovem aprendiz e estágios que incorporam a força de trabalho de jovens estudantes em substituição à oferta de emprego aos trabalhadores qualificados para o exercício da atividade. Outras formas de trabalho precário no turismo são evidenciadas pela contratação de trabalhadores temporários em período de alta temporada, provocando a instabilidade previdenciária, e nos trabalhos freelancer em que a atuação profissional aproxima-se à informalidade.
Os economistas neoclássicos defendem que com a globalização são necessárias a flexibilidade econômica e a desregulamentação do Estado, sendo contestado por diversos críticos do processo de globalização, uma vez que desconsidera o fato de que o trabalhador é o principal financiador da sua educação e a diminuição do Estado dificulta o poder para mudança desta realidade (Amado & Mollo, 2003).
O trabalhador em formação: afrouxando o nó coletivamente
Em síntese, seguindo os preceitos de Paulo Freire (2016, p. 96), “os oprimidos, em vários momentos de sua libertação, precisam reconhecer-se [...] na sua vocação ontológica e histórica em ser mais” e por isso defendemos uma qualificação profissional que contribua para a formação integral do trabalhador.
A formação integral do trabalhador acontece coletivamente, assim, a qualificação profissional somente resultará em melhorias nas condições de trabalho no turismo e na valorização salarial quando houver a “presença dos oprimidos na busca de sua libertação, mais que pseudoparticipação, é o que deve ser: engajamento” (Freire, 2016, p. 101).
Referências:
Amado, Adriana Moreira & Mollo, Maria de Lourdes Rollemberg. (2003). Globalização, Empregos e Salários. In. Amado, Adriana Moreira, & Mollo, Maria de Lourdes Rollemberg. (Org.). Noções de macroeconomia: razões teóricas para as divergências entre os economistas (Cap. 5, p. 151-169). Barueri: Manole.
Bottomore, Tom (org.). (1998). Dicionário do Pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Brasil. Ministério do Turismo. (2018). Política Nacional de Qualificação no Turismo. Brasília: MTur, UnB Recuperado em 14 de setembro, 2020, de http://www.turismo.gov.br/images/pdf/Publica%C3%A7%C3%B5es/PlanoPNQT_A4_64pgs_2019.pdf.
Freire, Paulo. (2016). Pedagogia do oprimido (60ª ed.). Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Jaeger, Werner. (1995). Lugar dos gregos na história da educação. In. Jaeger, Werner. Paidéia: A formação do homem grego (Introdução, p. 03-20). São Paulo: Martins Fontes.
Martins, Antonio C. P. (2002) Ensino Superior no Brasil: da descoberta aos dias atuais. Acta Cirúrgica Brasileira, 17(3), 4-6.
Silva, Sabina M. (2020) Educação tecnológica: a formação pela atividade cientificamente orientada (Cap. 1, p. 15-32). In. Costa, Maria A. (org.). Ensino e pesquisa na educação profissional e tecnológica: concepções e diversidades. Curitiba: Brazil Publishing.
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